Setembro 19, 2024
Mitos e embustes. Política de saúde em Portugal

Mitos e embustes. Política de saúde em Portugal

Terminado o querido mês de agosto, é tempo de regressar a coisas importantes. A saúde não saiu da agenda mediática por mais (péssimas) razões. Em ambiente extremo e de provocação fácil, proponho olhar para velhos mitos e novos embustes.

Na lista de mitos, emerge “o privado é mais eficiente que o público”. Desmentido factualmente em múltiplos estudos empíricos, foi alimentado pelo retrocesso na capacidade de gestão pública nos últimos 15 anos. No SNS, o primeiro momento desta política nefasta à gestão pública ocorreu em 2009 com a uniformização das carreiras médicas e de enfermagem, destruindo (em vez de aperfeiçoar e melhorar) a flexibilidade da gestão de recursos humanos nos hospitais públicos com estatuto empresarial. À luz do que sabemos hoje, um verdadeiro tiro nos pés! A reforma da gestão orçamental do Estado, atribuindo todo o poder ao Ministério das Finanças, impediu a gestão hospitalar a uma atitude quase total de pedidos de autorização, em regra vítimas de cativações ou de decisões arbitrárias e mal informadas. Conhecemos hoje o estágio: enorme sucesso nas contas públicas, condições degradadas na operação dos serviços de saúde.

Outra não verdade habitual é “a não utilização da oferta privada pelo SNS é motivada por razões ideológicas”. Na verdade, a ideologia na saúde manifesta-se na preferência pelo modelo de solidariedade universal ou pelo modelo que privilegia a capacidade para pagar e o estatuto de origem dos cidadãos. Afirma-se, portanto, na cobertura financeira da prestação de cuidados, não no estatuto do prestador. As diferenças ideológicas, formatadas com base em valores civilizacionais e em escolhas políticas democráticas, traduzem-se no respeito do “direito à saúde” e são concretizadas em financiamento baseado no rendimento dos cidadãos (impostos ou segurança social) ou em modelos alternativos baseados no risco ou nenhum volume de utilização de cuidados de saúde. No fim do dia, este é o ponto que faz toda a diferença. Ao optarmos pelo SNS (art. 64º da Constituição da República), o recurso colaborativo ao setor privado é uma questão eminentemente técnica e de gestão, hoje da total responsabilidade da Direção Executiva do SNS. A única condicionante política relevante e pertinente é a existência de uma autoridade reguladora com eficácia capacidade para cumprir a sua missão de garantir o respeito pelo interesse público. Importante recordar o Presidente Jorge Sampaio que, perante a proposta de privatização dos Centros de Saúde do Ministro Luís Filipe Pereira, efetuou a criação prévia da Entidade Reguladora da Saúde. A propósito, bem se poderia fazer um balanço dos 20 anos de existência da ERS. Moral desta história: não é adequado discutir a colaboração do setor privado no SNS com argumentos ideológicos, esta é matéria para especialistas de gestão, os verdadeiros, não os comentadores de TV, rádio e cassete pirata!

Embuste é a notícia de que está instalado o caos no SNS, sendo necessária uma resposta de emergência. O encerramento rotativo de urgências obstétricas e pediátricas é uma calamidade, uma mancha sem prestígio do SNS e alimenta a imagem negativa que os seus adversários divulgam. Pela minha parte, percebi a dinâmica quando, no verão de 2022, o Hospital de Braga, tinha 4 médicos obstetras disponíveis, mas, pelas regras das dotações mínimas condicionais pela Ordem dos Médicos, eram necessárias 5. Decisão: encerramento da urgência!!! Esta situação carece de solução rápida para o bem-estar e tranquilidade de mulheres, crianças e pais. Conhecimento e confiança serão ingredientes indispensáveis. O primeiro está evidenciado em relatórios de várias comissões na última década. Mas, para além das urgências, o SNS continua a prestar cuidados e a cuidar de nós em quase todas as situações. 80% dos internamentos, 65% das consultas médicas, 70% das cirurgias, hospitais públicos de portas abertas para receber os doentes oncológicos quando se esgota o “plafond” do seguro: no IPO Lisboa, 15% dos doentes estão nesta situação. Não existe caos no porto de abrigo seguro que é o SNS. O que é reconhecido pelo atual poder político, ao remeter para o final de 2025 os resultados do plano de emergência! Acreditaríamos na teoria do caos e certamente anteciparíamos esses dados!

Outro embuste é a necessidade de um pacto de regime entre PSD e PS para viabilizar reformas na saúde. Na verdade, os progressos mais significativos na organização do sistema de saúde nunca estiveram associados a pactos, formais ou informais, entre agentes partidários do sistema político. Pelo contrário, essenciais foram os momentos de consenso e aliança entre a liderança política em funções e as lideranças técnicas e profissionais.

Foi com o apoio dos líderes de enfermagem da época, que Arnaldo Sampaio lançou o Programa Nacional de Vacinação em 1965. Foi com o apoio dos líderes das várias profissões de saúde que António Arnaut legislou ao SNS, contra a vontade do PSD e da presidência da Ordem dos Médicos, em 1979. Foi assim que Leonor Beleza e Albino Aroso construíram e fizeram executar o Programa de Saúde da Mulher e da Criança nos anos 80, com resultados ímpares a nível mundial, sustentados até hoje. Foi com o apoio de líderes da administração hospitalar e de médicos como Manuel Antunes, que Luís Filipe Pereira transformou os hospitais públicos em empresas, criando as condições para uma década de progresso e afirmação da gestão pública em saúde. Foi assim que Correia de Campos promoveu a criação de uma rede inovadora e articulada de cuidados continuados, a reforma dos cuidados de saúde primários, com a criação das Unidades de Saúde Familiar, incluindo um modelo remuneratório em função do desempenho (válido para toda a equipe , médico, enfermeira e secretariado clínica) profundamente inovador na administração pública e, após a despenalização legal, a inclusão nos serviços prestados no SNS de interrupção voluntária da gravidez, livre e o pedido da mulher. Finalmente, foi assim que Paulo Macedo protegeu o SNS da devastação ameaçadora da intervenção da troika e das políticas baseadas no “ir além da troika” de alguns dos seus colegas de governo. Estes exemplos mostram que o sucesso reformista está associado ao consenso construído entre lideranças políticas e profissionais com vontade política de reforma e progresso na política de saúde. Nunca de pactos entre partidos políticos.

2024 é o ritmo do PSD. Recomendar pactos de regime com o Partido Socialista é um embuste fruto da ignorância e da incompetência, ou de uma estratégia ardilosa de quem se diz amante do SNS apenas para o açúcar o alimento ornamental. Por muito difícil que seja a composição da Assembleia da República e escasso o apoio parlamentar, se o Governo estiver mesmo interessado em reformar e melhorar o SNS, deve procurar o apoio necessário nas lideranças técnicas e profissionais.

Fonte link

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *