Desde o título, “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet, evoca seu predecessor, “Anatomia de um Delito”, lançado por Otto Preminger em 1959. Ambos são filmes de tribunal, ambos girando em torno da verdade e da dificuldade —talvez impossibilidade— de chegar a ela.
As circunstâncias, porém, são muito outras: o filme de 1959 remetia aos rescaldos da caça às bruxas macartista, requentada pela Guerra Fria. Nos Estados Unidos, a paranoia fazia vizinhos se estranharem, perguntando um se o outro seria agente comunista etc. O tribunal, frequente no cinema da idade, era o lugar onde se tentava honrar o falso do verdadeiro.
Os tempos são outros. Os julgamentos são sumários e nem é preciso passar por tribunais: na internet, sábios palpiteiros já conhecem a verdade sobre mais ou menos tudo.
Os novos tempos fazem de “Anatomia de uma Queda”, um processo menos do suposto delito —ou suicídio— que ali se discute cuja autoria, do que da leviandade com que se distribui justiça em lugares porquê redes sociais, com repercussões imediatas na vida real.
O contrapé desses ritos sumários é o que apresenta o filme Justine Triet. Ali, a bem-sucedida escritora alemã Sandra Voyter —a sensacional Sandra Hüller— tem de se entender com o fracasso do marido e um rebento com deficiência visual profunda. Passemos pelo veste que o problema do rebento surgiu de um acidente provocado pelo pai. O veste é que as repercussões sobre o casório foram profundas.
E mais profundas ainda se tornam quando Samuel, o marido, morre de uma queda da sacada da mansão onde moram, nos Alpes. Mansão isolada e onde não havia ninguém exceto a mulher e o falecido. Obviamente, a mulher se torna suspeita.
Triet tem a elegância e a delicadeza de nos conduzir ao labirinto retórico de um tribunal de júri, onde as evidências somem e reaparecem conforme advogados e promotores. O quadro do julgamento passa, em grande medida, por uma anatomia do casório e seus percalços. Não são poucos, a encetar pelos abalos que o sucesso da mulher provoca no marido, que não consegue ortografar um romance sequer, enquanto Sandra engata best-seller detrás de best-seller.
Não é só. Ele é galicismo, ela, alemã. Para todos se entenderem melhor, se comunicam em inglês. Ela não mora em seu lugar predilecto —longe de tudo, neve por toda segmento etc— para deleitar o marido, que por sua vez morre de ciúmes dela, não só pelo sucesso literário.
Vamos e venhamos, à segmento a sobrecarga com a visão deficiente do rebento, não são problemas assim tão inéditos. E nem as suas discussões —triviais, elevadas à requisito de quase prova do delito em certos momentos. A crise conjugal é um secundário importante, mas ainda assim um secundário à questão medial tratada por Triet.
Ela é: onde está a verdade? Uma vez que honrar o real do imaginário? O veste da ficção? Sobretudo se o que o filme mostra é fatos serem matéria-prima de ficções verborrágicas com que se procura convencer os jurados.
Entre tantas palavras, o filme evolui focando muito mais nos rostos dos personagens, em seus sofrimentos e perplexidades. Eles estão envolvidos no caos judiciário, quer expor, nessa procura da verdade em que é impossível honrar até aquilo em que se crê verdadeiramente de atitudes e discursos que se adotam por pura conveniência.
O parto da verdade é difícil —se é que é provável— e por milénio e um motivos a mulher é fragilizada durante um processo dessa natureza. Mais do que tudo, a justiça é também um rolo compressor pronto a amassar todos os lados interessados em obséquio da vaidade de seus operadores.
O que faz ressaltar essa imensa vaidade jurídica —na verdade, humana, pois tudo, sobretudo os desencontros do par, giram em torno da vaidade— é a imensa singeleza com que Triet conduz a ação. A cada momento seu interesse está em mostrar o funcionamento das falíveis instituições com o sumo de discrição.
Seu trabalho, suas posições e movimentos de câmera não estão lá para brilharecos, mas para revelar um pouco —o que não impede que a cena em que o marido aparece morto, sangue sobre a neve, logo no início, já ligeiro o testemunha a ver que não está mexendo com qualquer uma.´
Essa arte que se esconde enquanto mostra com rigor talvez seja uma das razões que levou Triet a lucrar a Palma de Ouro em Cannes no ano pretérito.