Maio 5, 2025
apontamentos sobre o sinistro no RS

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Opinião

Existe uma preocupação histórica em punir condutas humanas que propiciem inundações, malgrado estas sejam fenômenos eminentemente naturais. Note-se que, enquanto a passagem de Ulpiano no Digesto (47.12.10) previa que a inundação provocada pelo rompimento de diques do rio Nilo consistia em crimes extraordináriosos imperadores Teodósio 3º e Ulpiano 8º (409 d.C.) determinavam a imposição de pena capital àqueles que rompessem os diques do rio Nilo.[1] Na cidade de Veneza, o rigoroso Decreto de 1.501 punia com mutilação e confisco quem ousasse destruir os diques. [2]

Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

Enchentes no Rio Grande do Sul, Porto Alegre alagada em maio de 2024

Muito por isso, uma vez entendido uma vez que elemento de contenção e racionalização do o recta de puniro recta penal acabou incorporando tal preocupação histórica com o curso das águas. No Brasil, isso deságua justamente nos crimes de inundação (cláusula 254 do CP) e de transe de inundação (cláusula 255 do CP), os quais preservam a redação originária atribuída pelo Decreto-Lei nº 2.848/40 (CP), havendo poucos precedentes de emprego destes crimes pelos nossos tribunais.

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Ocorre que, com a recentíssima enchente ocorrida no Rio Grande do Sul, consistindo na maior tragédia climática ocorrida em solo gaúcho, senão na maior da história do Brasil, aproximando-se (ou superando) da magnitude dos desastres de Mariana (MG) e Brumadinho (MG), surgiram algumas reflexões sobre eventual responsabilidade dos gestores públicos acerca da política de prevenção e reação ao sinistro originário ocorrido no RS, havendo uma verosímil (co)participação do poder público, sobretudo na dimensão adquirida pela enchente em alguns municípios.

Muito provavelmente, dentre os diversos municípios severamente atingidos, a capital gaúcha concentra o maior número de críticas. Por exemplo, em reportagem divulgada pelo G1, Walter Collischonn, o qual é professor de Engenharia Ambiental e Hídrica na UFRGS, afirmou que o sistema contra cheias de Porto Feliz falhou miseravelmente. [3] Ato contínuo, o prefeito de Porto Feliz, Sebastião Melo (MDB), determinou a instauração de um procedimento de investigação do sistema de prevenção às enchentes da capital gaúcha no contextura do DMAE, departamento administrativo responsável pelo tratamento de chuva e esgoto. [4]

O que não faltam, portanto, são vozes que sustentam a responsabilidade do poder público, dos quais relâmpago de abrangência vai da responsabilidade social da governo pública por danos materiais e morais suportados pelos flagelados até a responsabilidade administrativa dos gestores públicos por eventuais falhas no sistema de proteção às cheias. Nesse contexto, situa-se o transgressão de inundação (cláusula 254 do CP), cujos contornos típicos-normativos são dignos de atenção:

Art. 254 – Fomentar inundação, expondo a transe a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:

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Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa, no caso de dolo, ou detenção, de seis meses a dois anos, no caso de culpa.

O transgressão de inundação (cláusula 254 do CP), no contextura da tipicidade objetiva, configura-se na modalidade comissiva e omissiva imprópria ou comissiva por preterição. No primeiro caso, o responsável justificação a inundação a partir de um agir positivo, o qual pode se dar através da liberação de barragens, ruína de diques, desativação de bombas centrífugas, etc. Por outro lado, a modalidade omissiva imprópria ou comissiva por preterição ocorre mediante um agir negativo — ou seja, um não agir — praticado por uma pessoa que ocupa uma posição de garantidora (cláusula 13, § 2º, do CP) diante de um obrigação jurídico de agir.

E cá, assim uma vez que tantos outros ramos do recta penal dependentes da assessoriedade administrativa, reside o primeiro problema dogmático: o que é o obrigação jurídico de agir? Ressalte-se que, uma vez que muito diagnosticado por Juarez Cirino dos Santos, “[n]os tipos de ação, o obrigação de omitir a ação proibida é, geralmente, evidente, mas nos tipos de preterição de ação o obrigação de realizar a ação mandada é, normalmente, obscuro para o destinatário da normal penal”. [5]

Pedra

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Nessa discussão, o espanhol Francisco Muñoz Conde sustenta que “[o] delito de preterição é, assim, estruturalmente sempre um delito que consiste na infração a um obrigação. Mas, não de um obrigação social ou moral, senão de obrigação imposto pela lei, em função da proteção de muito jurídico”. [6] No mesmo tom, embora compreendendo o obrigação de agir e o poder de agir de forma una, Juarez Tavares sustenta que a “preterição, que se vincula a uma conduta devida, portanto a um obrigação de agir, não pode o empírico ser tomado exclusivamente em face de possibilidade e impossibilidade física, senão também normativa”. [7]

Por manifesto, uma concepção liberal de recta penal, calcada no princípio da validade (cláusula 1º do CP), mostra-se incompatível com uma versão subjetiva do obrigação jurídico de agir, impondo-se uma versão estritamente objetiva. Ou seja, exige-se que o obrigação jurídico de agir decorra de uma norma jurídica vigente, aplicável ao caso e dos quais teor seja evidente e dispositivo. Caso contrário, criminalizar-se-iam decisões exclusivamente políticas; todavia, mesmo que equivocadas, tais decisões podem estar dentro da margem de discricionariedade do gestor público na implementação de sua plataforma governamental.

Outrossim, existe um segundo problema dogmático incidente sob a modalidade omissiva imprópria do transgressão inundação: a quem era dirigido o obrigação jurídico de agir? Por fim, embora a maioria dos funcionários públicos para fins penais (cláusula 327 do CP) sejam facilmente inseridos no rol do cláusula 13, § 2º, do CP, assumindo a posição de garantidor, o obrigação jurídico de agir deve ser específico (não extenso), direcionando-se a alguém ou, no mínimo, a um grupo de pessoas, sobretudo ao tratar de normas que regem a governo pública, caracterizada por uma estrutura hierárquica complexa e densa. Em outras palavras, a pessoa que praticou a conduta omissiva deve ser destinatária direta do obrigação jurídico de agir, sob pena de terebrar a possibilidade de punir todo e qualquer funcionário público ou unicamente o encarregado do Poder Executivo.

Demais, superados os dois primeiros problemas dogmáticos, os quais radicam sob o obrigação jurídico de agir do garantidor, existem outros dois problemas. O primeiro é o poder de agir do gestor público, o qual, particularmente, consubstancia-se na disponibilidade de recursos públicos suficientes, assim uma vez que na existência de respaldo permitido e autorização para a ação. Logo, “[n]ão há conduta devida de auxílio quando não existe possibilidade de prestá-lo”. [8] Por sua vez, o segundo é a causalidade estabelecida entre o resultado e a ação omitida, exigindo-se que a preterição do gestor público possua o virtude — no mínimo, potencial — de evitar a inundação, resultado naturalístico previsto pelo tipo penal do cláusula 254 do CP.

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Em resumo, ao identificar (e explorar) quatro problemas dogmáticos existentes no processo hipotético de imputação do transgressão de inundação (cláusula 254 do CP) a eventuais gestores públicos, na modalidade omissiva imprópria ou comissiva por preterição, em razão do sinistro climatológico ocorrido no Rio Grande do Sul, buscou-se endossar a razão mais genuína da existência do recta penal: o seu papel de dique de contenção do poder punitivo do Estado, sobretudo em casos rumorosos, caracterizados por arroubos punitivistas e que, no mais das vezes, são frutos de erros massivos e generalizados dos seres humanos.


[1] PRADO, Luiz Regis. Tratado de recta penal. Vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 85.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de recta penal: segmento peculiar: crimes contra a pundonor sexual até crimes contra a fé pública (arts. 213 a 311-A). Vol. 4. 17. ed. São Paulo: Saraivajur, 2023. p. 169.

[3] PONTES, Nádia. Por que sistema contra cheias não funcionou em Porto Feliz. Jornal Gl. 18 mai. 2024. Disponível em: https://g1.orbe.com/meio-ambiente/noticia/2024/05/18/por-que-sistema-contra-cheias-nao-funcionou-em-porto-alegre.ghtml. Entrada em: 29 mai. 2024.

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[4] BONI, Mathias. Prefeitura determina investigação no Dmae posteriormente revelação de alertas sobre deficiências em casas de petardo. GZH Do dedo. 25 mai. 2024. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2024/05/prefeitura-determina-investigacao-no-dmae-apos-revelacao-de-alertas-sobre-deficiencias-em-casas-de-bomba-clwmo9k5c00d9014x6u2qiekl.html. Entrada em: 29 mai. 2024.

[5] DOS SANTOS, Juarez Cirino. Recta penal: segmento universal. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014. p. 212.

[6] MUÑOZ CONDE, Fracisco. Teoria universal do delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Feliz: Fabris, 1988. p. 30.

[7] TAVAREZ, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 440.

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[8] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de recta penal brasílio: segmento universal. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 484.

Fonte

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