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- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
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Arteiro que só ele, o saci quer dar um jeito de se apropriar das abóboras do Halloween. E, como propagam os “saciólogos” Brasil afora, devorá-las feito escondidinho de carne-seca, numa receita nacional.
É o que prega o jornalista e geógrafo Mouzar Benedito, um dos criadores da Sociedade de Observadores de Saci (Sosaci), instituição fundada em 2003 para não deixar morrer a cultura do personagem, o negro de uma perna só, cachimbo na boca e carapuça vermelha na cabeça.
Incomodado com a, nas suas palavras, “invasão cultural representada pelo Halloween no Brasil”, ele e um grupo de amigos decidiram fundar a associação e lutar para que no mesmo dia se celebrasse o Saci.
Criaram um evento em São Luiz do Paraitinga, no interior paulista, e mobilizaram para que a cidade instituísse, desde aquele mesmo ano de 2003, uma lei municipal determinado que o dia 31 de outubro seria do Saci.
A iniciativa acabou sendo replicada em outros municípios e, no ano seguinte, lei semelhante também foi aprovada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Crédito, SOSACI/DIVULGAÇÃO
“O Halloween foi imposto como uma coisa ideológica de propaganda, como marca do domínio da cultura dos Estados Unidos sobre nós”, justifica-se Benedito, à BBC News Brasil.
“Uma forma de domínio de um povo, de uma civilização, é mostrar e impor uma ideia de que a cultura do colonizador é melhor e maior do que a do colonizado.”
Quando deputado federal, o historiador Chico Alencar (PSOL-RJ) apresentou projeto de lei pretendendo que a data se tornasse uma comemoração nacional.
“O Halloween, que tem crescido nos centros urbanos brasileiros, é uma celebração que não tem nada a ver com a nossa cultura, com a nossa tradição. Quem adere ao Halloween aqui está fazendo uma pura imitação, é vontade de parecer desenvolvido a partir da concepção de que há povos desenvolvidos culturalmente e povos subdesenvolvidos”, diz ele, à reportagem.
Crédito, SOSACI/DIVULGAÇÃO
O personagem
Conta-se que o saci original não era negro — e nem pulava sobre uma perna só. Era uma figura indígena que guardava as florestas de Mata Atlântica.
Mas, assim como o próprio brasileiro, esse personagem acabou ganhando características de outras culturas. Assim, com os escravos, em sua maioria de origem africana, acabou se tornando negro. E foi da mitologia europeia que ele assumiu a carapuça mágica, na verdade um píleo, como dos duendes.
“Não podemos esquecer é que nosso país é pura miscigenação. Somos índios, somos africanos, somos europeus. O saci é a mais pura representação disso”, afirma à BBC News Brasil o professor e pesquisador Fernando Pereira, especialista em cultura brasileira da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Os índios têm seres ‘mágicos’ que protegem as florestas. Os negros, na África e depois no Brasil, também acreditavam e ainda acreditam em seres protetores das matas, dos rios e animais. Os portugueses e outras culturas europeias trouxeram de seu imaginário seus seres que habitam as florestas da Europa, os duendes. Pois a figura do saci é o amálgama de tudo isso.”
Em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, de 1954, o historiador e antropólogo Câmara Cascudo (1898-1986) apresenta o saci-pererê como uma “entidade maléfica em muitas, graciosa e zombeteira noutras oportunidades”.
“Pequeno negrinho, com uma só perna, carapuça vermelha na cabeça que o faz encantado, ágil, astuto”, descreve.
“Amigo de fumar cachimbo, de entrançar as crinas dos animais, depois de extenuá-los em correrias, durante a noite, anuncia-se pelo assobio persistente e misterioso, inlocalizável e assombrador. Pode dar dinheiro. Não atravessa água como todos os ‘encantados’.”
Cascudo atenta para o fato de que os cronistas coloniais “não o mencionam”, situando, portanto, o surgimento da lenda no século 19.
“Diverte-se, criando dificuldades domésticas, apagando o lume, queimando alimentos, espantando gado, espavorindo os viajantes nos caminhos solitários”, prossegue ele.
“Há muitas documentação sobre o saci, origem e modificações.”
Crédito, Tatiana Fraga
O primeiro intelectual que se dedicou a traduzir da cultura oral para a escrita o mito do saci foi o escritor Monteiro Lobato (1882-1948).
Em 1917, ele pediu a leitores do jornal O Estado de S. Paulo — do qual era assíduo colaborador — que lhe escrevessem cartas respondendo a três questões: qual sua concepção pessoal do saci e como a recebeu na infância; qual a forma atual da crendice na região onde o leitor vivia; que histórias ou casos interessantes conhecia do saci.
Lobato compilou os relatos e publicou um livro, seu primeiro, chamado O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito. O personagem folclórico, contudo, não se esgotaria aí em sua obra. Na série infantil do Sítio do Pica-Pau Amarelo, o saci se tornou personagem recorrente — e emprestou seu nome ao título de um dos livros.
Se por um lado o escritor ajudou a materializar, no imaginário nacional, a figura do saci, por outro ele acabou optando por um viés negativo para caracterizá-lo.
“A representação de Monteiro Lobato, ao mesmo tempo que é um marco importante é também muito polêmico”, argumenta à reportagem a jornalista, poeta e gestora de projetos educativos e culturais Tatiana Fraga, uma das curadoras da exposição #OcupaSacy — atualmente em cartaz no Sesc Taubaté.
“Ele difundiu uma história muito específica do saci, carregado de racismo e de simbologias negativas. A gente vê essa simbologia.”
Fundador da Associação Nacional dos Criadores de Saci (ANCS), o tecnólogo José Oswaldo Guimarães diz que O Saci, de Lobato, foi o primeiro livro que eu leu na vida, quando criança. Ele ficou fascinado por aquele universo de lendas caipiras, interioranas, que também era muito presente em sua terra natal — ele é de Botucatu, no interior paulista.
Crédito, Tatiana Fraga
Já adulto, começou a ouvir relatos de moradores da zona rural. Havia histórias de sacis que faziam talhar o leite, que deixavam éguas alvoroçadas e a quem eram atribuídas tantas outras travessuras. Com amigos, decidiu criar sacis.
Sua premissa é que toda vez que alguém conta uma história de saci, pronto, mais sacis são criados no mundo.
“Com isso comecei a participar de vários eventos de folclore pelo Brasil”, recorda ele, em conversa com a BBC News Brasil.
Mas ele conta que não é fácil ser criador de sacis no Brasil de 2020.
“Falamos muito sobre o saci. Quando criamos saci, criamos no sentido de zelar, de cuidar. De cuidar do ambiente para que eles possam aumentar. E eu não gostaria de ninguém atacando o saci, assim como não quero atacar outras culturas.”
“Só que hoje temos sofrido muitos ataques, porque as pessoas, por ignorância, dizem que é algo satânico, do demônio, de bruxa, ou vêm com comentários racistas dizendo que é cultura dos negros. Já tive de responder a gente dizendo que saci era formador de quadrilha, que se ele não trabalhava então ele roubava, absurdos desse tipo”, relata.
Crédito, ANCS/DIVULGAÇÃO
Contraponto ao Halloween?
Entre os “saciólogos”, contudo, não há um consenso de posicionamento frente ao Dia das Bruxas. Críticas de parte a parte já foram feitas no meio, aliás.
Os “observadores de saci”, anos atrás, passaram a dizer que os “criadores de saci” utilizavam gaiolas fechadas para a procriação — o que seria um erro, uma maldade, manter o ser em cativeiro.
Os “criadores” rebateram prontamente que se havia sacis hoje nas matas para os “observadores” verem, era porque eles estavam sendo bem-sucedidos nas criações e, depois, soltando na natureza.
Brincadeiras à parte, os grupos se respeitam e acham que cada um faz seu papel.
“Eles consideravam que a gente estava politizando muito a questão por peitar o Halloween”, admite Benedito, da Sosaci.
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“Eu não quero acabar com a Halloween. Nossa ideia é reforçar a cultura do saci e não diminuir outras culturas”, diz Guimarães, da ANCS.
Para o pessoal da ANCS, o Dia do Saci não deveria ser na mesma data que o Dia das Bruxas.
“Justificar uma data matando outra é inócuo, e acaba realçando ainda mais o Halloween”, argumenta Guimarães.
“E por que acabar com uma cultura, seja qual for ela? Queremos aumentar a cultura do povo, e não diminuir.”
Ele conta que até estudou um pouco de cultura celta e passou a explicar também sobre o Dia das Bruxas nos eventos dos quais participa.
E da mesma forma como defende que existam “associações de criadores” de lobisomens, de mulas-sem-cabeça, de curupiras, também iria aprovar a existência de uma entidade de criadores bruxas.
“Já temos muitos inimigos da cultura. Nosso folclore precisa se sobrepor à ignorância”, ressalta Guimarães.
“Tudo é questão de contexto”, relativiza Fraga, curadora da #OcupaSacy.
“Não lutamos contra o Halloween. O Halloween chegou ao Brasil da mesma maneira como muito da cultura americana chega ao Brasil. Tem um movimento antropofágico aí. A questão não é o Halloween. Vamos brincar o Halloween, toda brincadeira fantasiosa é muito legal. A questão é também ter o saci.”
“Os mitos podem conviver”, prossegue ela.
“E faz bastante mais sentido para nós a brincadeira do saci: é mais verdadeira no sentido de ter uma verdade histórica, uma relação com nosso povo que dialoga com nossas vivências.”
O ex-deputado federal Chico Alencar defende que o resgate de figuras folclóricas é importante para o povo nacional.
“O saci é muito interessante porque recupera em sua figura a luta contra a escravidão, contra todas as formas de opressão. É importante para o fortalecimento da identidade nacional”, diz.
Mas ele reconhece que, no dia 31 de outubro, o Halloween é mais forte.
“Nossa mentalidade colonizada e subalterna ainda prevalece. Portanto, a luta pelo reconhecimento e valorização do saci prossegue e ainda tem de vencer muitas etapas até se construir no novo imaginário popular”, comenta.
“Instituições, governos e escolas contribuiriam muito para isso se tivessem essa preocupação, se valorizassem a figura simpática, incômoda, arteira e brincalhona do saci.”
“Eu, particularmente, sou fã dessa figurinha: porque sem imaginação e sonho você não vive, ninguém é pura e dura realidade, exclusivamente. Mas o saci é a molecagem brasileira, é a resistência alegre a tudo o que algema, que controla e que paralisa.”
Para o professor Pereira, especialista em Cultura Brasileira do Mackenzie, os grupos que se esforçam para resgatar figuras do folclore fazem um trabalho “fundamental e imprescindível”.
“O folclore é o saber popular que se valoriza e que se perpetua ao longo das gerações. A história de qualquer país está intimamente ligada ao seu folclore, suas tradições, crenças e costumes”, explica.
“Quem se interessa por isso com certeza sai enriquecido por inúmeros elementos que deram origem ao modo de pensar, agir e sentir do povo de quem descende. E pais, educadores e professores tem papel fundamental nesse processo.”
Ele não acha que festas como o Dia das Bruxas precisam ser combatidas.
“Não sou refratário a introdução de outros elementos em nossa cultura. O Brasil sempre foi uma ‘mistureba’. Antropofagia pura. O que me preocupa é que um elemento puramente comercial supere manifestações folclóricas, nascidas do imaginário popular e de tradições.”
“E no meu entendimento pais e professores têm um papel fundamental na preservação de nossos valores culturais e de nossas tradições. Não é proibido o novo, mas não podemos esquecer o antigo”, ressalta.
A solução, segundo ele, seria que temas relacionados ao folclore não fossem abordados apenas em datas comemorativas, mas que fizessem parte do dia a dia.
“Infelizmente, notamos que muitas escolas e professores ignoram a importância do folclore na criação da identidade cultural do país e acabam abordando o tema de maneira superficial”, critica ele.
“Há que se abordar cada tema com sensibilidade suficiente para estimular a inteligência, a curiosidade e as emoções. Isso vai permitir um equilíbrio do aprendizado, um equilíbrio entre o velho e o novo, entre o real e o imaginário, entre o que é tradição e o que é produto comercial e principalmente, demonstrar que é possível fazer do passado um referencial de vida.”
“O saci é a perfeita representação da miscigenação: índio, negro e europeu. Que o saci seja apenas um item introdutório na apresentação de outros elementos”, vislumbra Pereira.
“O saci é uma figura anti-imperialista. Acho que se depender dele, vai mesmo comer a abóbora”, resume Fraga.
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