Crédito, Alejandra López
Candelaria Schamun, de 42 anos, descobriu aos 17 que, ao nascer, se chamava Esteban.
Em uma pasta virente arquivada na escrivaninha de seu pai, a argentina encontrou uma antiga diploma de promanação que indicava que tinha sido registrada uma vez que um bebê do sexo masculino.
“Menino sem os testículos descidos”, registrou o obstetra em seu histórico médico.
No entanto, um mês em seguida o promanação, os médicos informaram aos seus pais que, em seguida uma série de análises, descobriram que Esteban não era um menino, mas uma moça.
A produção excessiva de andrógenos (hormônio masculino) havia causado a “virilização dos genitais externos”; ou seja, o desenvolvimento de características sexuais masculinas externas – ou um “clitóris superdesenvolvido” – que não contradizia a presença de órgãos genitais internos femininos.
Intersexual é o termo usado para descrever pessoas que nascem com características sexuais biológicas que não se encaixam nas categorias típicas de sexo feminino ou masculino.
Crédito, Pilha pessoal
No hospital, a equipe de especialistas recomendou iniciar uma série de cirurgias: duas antes de completar 1 ano, outra aos 13 e uma última aos 17, para fazer com que a “anatomia se encaixasse no sexo”.
Apesar de que os únicos objetivos de seus pais fossem o de proteger sua recém-nascida de concordância com os padrões da medicina do início da dez de 1980, Candelaria descreve essas operações uma vez que “desnecessárias e evitáveis”.
“Mutilaram meu clitóris em nome da normalidade. Não havia nenhuma premência médica de fazer isso, cortaram para que não parecesse um pênis”, disse Schamun à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Ao longo dos anos, a ciência confirmou que intervenções cirúrgicas que não são motivadas por urgência médica são frequentemente invasivas e irreversíveis e, portanto, não são recomendadas em crianças.
Foi só aos 27 anos, uma dez em seguida deslindar sua verdadeira história, que esta escritora e jornalista conseguiu inaugurar a dar voz ao que por anos foi um sigilo familiar.
Em 2023, Candelaria publicou o livro Ese que fui: Expediente de una rebelión corporal (Aquele que fui: Memorial de uma rebelião corporal, em tradução livre), um relato sincero que narra sua procura pela identidade.
Esta é sua história contada em primeira pessoa.
A pasta virente
Eu sou Candelaria, mas ao nascer os médicos acreditaram que eu era um menino e meus pais me chamaram de Esteban.
No dia em que descobri esse sigilo, minha vida mudou para sempre.
Lembro-me de estar no quarto da minha mãe, no primeiro andejar da minha moradia – uma mansão enorme do início dos anos 1900 na cidade de La Plata (Argentina) – experimentando um vestido de sarau que eu usaria para transpor com minhas amigas da escola.
Depois de falar ao telefone com uma delas, quase de modo involuntário, desci as escadas e fui até o escritório do meu pai, que permanecia intocado desde o dia de sua morte.
Na escrivaninha onde ele guardava todos os seus papéis, abri uma das gavetas e encontrei uma pasta virente que dizia: “Candelaria. Saúde”.
Não sei por que tive o impulso de ir ao escritório do meu pai. Não tenho um porquê. Isso para mim continua sendo um mistério.
Entre os documentos, descobri a diploma de promanação, com a mesma data de natalício que a minha, com o nome de Esteban Schamun.
Instantaneamente, me dei conta de tudo: Esteban não era um irmão gêmeo falecido, mas eu mesma.
Crédito, Pilha pessoal
Senti pânico. Comecei a me perguntar: quem eu era, quem fui, por que fui um menino.
Depois da surpresa, veio a repugnância. Para me proteger, escondi a pasta embaixo do colchão.
Era verão, do lado de fora fazia um calor infernal, mas eu estava gelada. Enrolada em posição fetal, comecei a chorar.
O que eu havia lido era desesperador. Em cada página, em cada envelope, havia uma informação que me expunha.
Saí da leito e corri para o chuveiro. Me sentia suja.
Amaldiçoei minha mãe: “Tomara que você morra”. O meu pai: “Que sorte que você está morto”. Eu amaldiçoei minha própria existência: “Sou repugnante, um monstro”.
A partir desse momento, minha mocidade se obscureceu. Comecei a me machucar, a ingerir mais álcool, a me distanciar dos meus amigos, a permanecer zangada com minha mãe, zangada com todos.
Passei por situações de muito desamparo porque não podia recontar a ninguém.
Demorei muito para conseguir recontar. Muito. Mais de dez anos.
‘Um remendo sobre outro’
Tudo começou quando, um mês em seguida meu promanação, minha mãe notou que, cada vez que me amamentava, eu vomitava leite. Preocupada com minha saúde, me levou ao médico.
Depois de análises clínicas, o pediatra pediu minha internação com urgência.
Minha mãe ligou para o meu pai, pediu para que viesse o mais rápido que pudesse e decidiu me levar ao Hospital das Crianças de La Plata, um respeitado hospital público de Buenos Aires.
Mas as horas passavam e ninguém arriscava um diagnóstico. Foram dez dias de angústia e desespero, até que o médico galeno solicitou a mediação de uma endocrinologista.
Foi logo que chegou o diagnóstico: “hiperplasia adrenal congênita perdedora de sal”.
Uma diferença genética que afeta as glândulas supra-renais e, consequentemente, a capacidade do corpo de produzir hormônios. Isso havia diferente a conformação dos meus órgãos genitais externos.
Fui tratada pelos melhores endocrinologistas do país, e eles concluíram que eu precisava de medicação vitalícia e de algumas cirurgias programadas para melhorar a “malformação”.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a mutilação genital feminina uma vez que a remoção parcial ou totalidade dos genitais externos femininos por razões não médicas.
Esta prática é reconhecida internacionalmente uma vez que uma violação dos direitos humanos das mulheres e meninas, embora no caso de Candelaria, os pais tivessem a intenção de protegê-la.
Mais de 200 milhões de mulheres e meninas vivas no mundo já passaram por essas práticas, de concordância com informações da OMS em 30 países.
Aos 3 meses de vida, fui submetida à primeira operação. Entrei no conjunto cirúrgico nos braços da minha mãe, ela quem colocou a máscara de anestesia em mim. Para adequar o tamanho do clitóris aos padrões de “normalidade médica”, eles o mutilaram.
As consequências foram irreparáveis: destruíram as terminações nervosas do órgão responsável pelo prazer. Sequelas que ainda sofro até hoje.
Aos 9 meses, veio a segunda operação: uma vaginoplastia. Construíram minha vagina e um princípio de buraco do meio vaginal. Cortaram, costuraram, removeram os excessos e formaram os pequenos lábios por meio de uma labioplastia.
Aos 12 anos, pela terceira vez, entrei no conjunto cirúrgico. O chamado “abocamento” desta vez foi mais profundo, para conectar o exterior com o interno. Nessa ocasião, descobriram que eu tinha ovários, útero e trompas de Falópio.
Mas a incompetência dessa operação me levou a um quadro de incontinência urinária. Durante cinco anos, eu tossia e urinava.
Finalmente, aos 17 anos, veio a quarta e última operação. Esta mediação visava separar a vagina da uretra e reparar os danos da cirurgia anterior.
Meu corpo tem um remendo sobre outro.
Nenhuma das cirurgias trouxe mercê médico. Não havia zero para sarar. Todas foram intervenções estéticas, feitas para satisfazer o olhar do outro, para expor que “esta pessoa é Candelaria e possui uma vulva e uma vagina de concordância com o que uma mulher deve ter”.
Além da incontinência urinária, essas cirurgias resultaram em outros problemas: perda de prazer, traumas e choque pós-traumático.
Meus pais seguiram rigorosamente o que os melhores especialistas diziam. Nunca quiseram me prejudicar. Naquela estação, os médicos diziam que era o melhor para mim.
É incrível o que um corpo tem que suportar para se encaixar na sociedade.
O sigilo familiar
Enquanto a vida familiar girava em torno da minha saúde, meus pais juraram velar o sigilo e prometeram nunca me recontar zero.
Ao mesmo tempo, nos meus primeiros meses de vida, eles iniciaram um processo judicial para solicitar a mudança de nome e sexo na diploma de promanação. Não queriam somente uma correção na diploma existente, mas sim um novo documento, para nunca precisarem dar explicações a ninguém.
Um ano depois, meus pais receberam a notícia de que um juiz havia assinado a sentença anulando a diploma de promanação de Esteban Schamun e ordenando uma novidade diploma em nome de María Candelaria Schamun. O documento de Esteban ainda existe e está arquivado no processo com seu nome.
Meus pais comemoraram a decisão judicial uma vez que um novo promanação.
A fé religiosa deles, principalmente a de meu pai – um varão que aos 12 anos sonhava em ser padre – tornava quase impossível discutir questões consideradas desconfortáveis na família.
Crédito, Pilha Pessoal
O silêncio me causou muito dano, mas agora sei que tudo o que buscavam era me proteger.
Unicamente aos 17 anos descobri a verdade. E, paradoxalmente, somente me uni em silêncio ao sigilo dos meus pais.
Durante anos, não contei a ninguém.
Mas à medida que os anos passavam, o sigilo se transformava em negrume.
Tive uma disputa com minha mãe – meu pai já havia falecido -, a relação se tornou insuportável e saí de moradia aos 18 anos.
Foi somente uma dez depois que consegui falar sobre isso pela primeira vez com uma psicóloga.
O matéria me envergonhava. Tinha pavor de que deixassem de me amar ou de que me fizessem perguntas que eu não podia responder.
“É compreensível. A mutilação genital é considerada tortura. Você foi torturada. Você está passando por um choque pós-traumático, que pode ser comparado ao choque que os soldados sofrem ao retornar da guerra”, me disse a terapeuta.
Aos 30 anos, consegui confrontar minha mãe. Ela me escreveu uma missiva confessando que nunca quiseram me produzir uma vez que uma párvulo doente. Queriam que eu fosse livre. E conseguiram.
“Fizemos tudo o que os médicos nos mandaram. Se precisássemos ir à China, íamos à China, corríamos de um lado para o outro”, diz um dos trechos da missiva.
“Fizemos o impossível para que você tivesse uma puerícia feliz e normal uma vez que as outras crianças da sua idade”.
Depois de conversar com minha mãe, consegui transformar a raiva acumulada ao longo dos anos em empatia.
Naquele momento, ainda não entendia completamente a magnitude de colocar em palavras minha história, de uma vez que recontar o que estava acontecendo comigo poderia libertar muitas pessoas, além de me libertar.
Novidade lanço
Em 2019, no Encontro Pátrio de Mulheres da Argentina, durante a primeira oficina sobre intersexualidade realizada no evento, decidi amplificar minha voz.
Foi a primeira vez que contei minha história diante de um grupo de pessoas desconhecidas.
Estava muito ansiosa, queria compartilhar, mas a situação me aterrorizava.
Fui a primeira a levantar a mão e comecei a falar. Falei tanto que mal conseguia respirar. Não conseguia parar, eram anos de silêncio.
Quando terminei, fui aplaudida e abraçada. Recebi muito paixão. Foi só logo que entendi que não era um monstro e que minha história poderia ajudar outros.
Não precisava mais me esconder. Aos poucos, tudo começou a fazer sentido.
Crédito, Alejandra López
Começaram a se aproximar pessoas intersexuais que, pela primeira vez, ouviam sua própria história na voz de outra pessoa, que por anos pensaram que seus casos eram únicos.
Nos criaram acreditando que não havia ninguém que pudesse ter algumas características semelhantes. Foram anos de muita solidão.
Portanto, me animei a grafar minha história, em primeira pessoa. Queria recontar o dano irreparável e irreversível que a medicina causou no meu corpo.
Redigir oriente livro, colocar em palavras “Ese que fui”, aliviou minha vida e a de toda minha família. Gostaria que fosse publicado em outros países, em outros idiomas, pois pode ajudar muitas pessoas.
A mutilação genital em crianças que nascem com traços intersexuais já não é a norma.
Apesar de a ciência recomendar que o melhor é deixar que a pessoa decida sobre seu próprio corpo, ainda são realizadas outras cirurgias genitais, irreversíveis, dolorosas e traumáticas, para regularizar corpos de bebês, crianças e adolescentes.
Crédito, Sudamericana
Há organizações de pessoas intersexuais em todo o mundo que estão lutando pelos nossos direitos, para que não continuem intervindo em corpos de crianças e bebês intersexuais somente por questões estéticas.
Se você acredita que é intersexual, aproxime-se dessas organizações, você encontrará base e guarida.
Eu passei por um processo cirúrgico desnecessário, somente com o objetivo de modificar meu corpo e, assim, expelir todas as características que poderiam gerar anfibologia ou repudiação da sociedade.
É necessário repensar muito a visão que temos sobre os corpos, até que ponto estamos dispostos a permitir que uma pessoa sofra para se encaixar aos olhos dos outros.
Narrativa minha história para que, entre outras razões, parem de mutilar crianças intersexuais e para que se garanta o recta à integridade corporal e à verdade.
Hoje, sinto orgulho do que meus pais fizeram; oriente livro, em secção, é uma forma de agradecê-los. E sinto orgulho de ser Candelaria, embora também haja uma secção de mim que ainda é Esteban.
Olho para trás e sinto alegria por ser quem sou.