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Num mundo em que a agressividade e a certeza absoluta rendem likes que valem mais que dinheiro, ponderação parece ter virado coisa de trouxa –mas ainda é essencial no jornalismo.
Outro dia, a Folha publicou uma reportagem cujo título informava: “Biscoito recheado pode tirar até 39 minutos de vida saudável por porção, diz estudo brasileiro”. O trabalho elencava os “piores alimentos” e os “melhores”, que dariam minutos de vida: “peixe de água doce (+17,22 minutos), banana (+8,08 minutos) e feijão (+6,53 minutos)”.
O enunciado alarmista e ultrassimplificado era desautorizado pelo próprio texto (“não necessariamente toda refeição com esses alimentos tira minutos de vida”). O leitor fica sem saber por que, então, o estudo era apresentado naqueles termos.
A Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos) emitiu nota crítica à abordagem: “O impacto de um alimento depende de fatores como a frequência de consumo, a combinação com outros alimentos, o estilo de vida do indivíduo e condições metabólicas específicas.” Mas afirma não ter sido procurada pela Folha nem por outros veículos que relataram conclusões da pesquisa para repercuti-la.
No ano passado, a Folha informou que “cientistas descobriram que ultraprocessados de origem vegetal estão associados a um aumento de 12% das chances de óbito por problemas do coração”. Meses depois, a mesma Folha publicou tradução de reportagem do The New York Times segundo a qual “substitutos vegetais a carnes ultraprocessadas podem ser menos prejudiciais à saúde”.
Na gangorra da nutrição, não faria mal ao jornalismo um pouco mais de prudência. O discurso científico mal digerido contribui para gerar pânico moral e dar origem a vieses anticientíficos. É preciso um grau maior de ceticismo no tratamento dessas informações.
Sobretudo ao longo dos anos 1990 e 2000, uma parte importante dos meios de comunicação nutriu-se da cultura das dietas e dos alimentos milagrosos. Mudaram os tempos, e o ataque simplista aos ultraprocessados parece ter ocupado esse lugar na mídia. A diferença é que agora há as poderosas câmaras de eco das redes sociais, onde discurso “pela saúde” triunfa junto com novos suplementos, métodos e coaches.
A atual autoridade máxima de Saúde dos EUA, Robert F. Kennedy Jr., emergiu de uma dessas bolhas e tem os pés fincados em teorias conspiratórias e negacionismo supostamente pró-saúde.
A ideologia de RFK Jr. está na base da denúncia de censura feito pelo pesquisador Kevin Hall, um dos principais pesquisadores de nutrição e metabolismo dos EUA e que já atestou a relação entre processamento dos alimentos e obesidade. Hall deixou o NIH (National Institutes of Health), subordinado ao Departamento de Saúde, depois de ter sido, segundo sua denúncia, impedido de falar com jornalistas sobre um estudo que não encontrava evidência sobre uma suposta natureza viciante dos ultraprocessados. Essa é uma das crenças de RFK Jr.
Se a Folha vai mal ao relatar pesquisas sobre ultraprocessados, vai ainda pior ao endossar práticas duvidosas da indústria de alimentos.
Depois de noticiar, sem ponderação, outros estudos que ligam ultraprocessados a problemas de saúde como Parkinson (o NYT mostrava fragilidades e limitações da pesquisa sem desqualificá-la), a Folha resolveu ouvir a indústria não a respeito desses estudos, mas sobre como usar o leite condensado falso (“mistura láctea”) que tomou conta das prateleiras em tempo de inflação.
O objetivo seria permitir ao consumidor “comer pudim o ano todo”. O problema já começava no fato de a Folha comprar a premissa equivocada que a fabricante queria vender (desde quando pudim é sobremesa sazonal?).
Condescendente, o jornal afirmava que a indústria “aposta nas misturas lácteas (…) para permitir que famílias brasileiras continuem consumindo doces sem pesar tanto no bolso”. Mas não informava o que os produtos significam para a indústria em termos de faturamento, a redução de custo ao fabricá-los, que tipo de público busca nem qual é a diferença de preço entre os originais e essas adaptações.
A certa altura, o jornal passa a orientação da empresa sobre como o produto deveria ser “aditivado” para funcionar: “Usar 100 ml a mais de leite no preparo do brigadeiro ou deixar a mistura condensada 20% do tempo a mais no fogo na hora de fazer o pudim”. Se a intenção é economizar com o produto, gastar mais leite ou gás para aproximá-lo do original faz sentido? A missão de apurar é do jornal, mas a conta fica para o leitor.
E, assim, num dia as comidas são encaradas como veneno, no outro promove-se a venda de gato por lebre. Entre isso e aquilo, o leitor continua a descascar seus abacaxis, sem saber quantos minutos de vida perderia com um pedaço do pudim de leite condensado falso.
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