
Manuela DiasAutora
A autora Manuela Dias terá 6.600 páginas de roteiro, ou 174 capítulos, para recontar a história de uma das telenovelas mais emblemáticas da televisão brasileira: Vale Tudo. Desafio no qual ela trabalha há cerca de dois anos, desde que foi convidada para escrever o remake da trama que será um dos principais produtos dos 60 anos da TV Globo.
A menos de um mês da estreia, marcada para 31 de março, Manuela já escreveu mais da metade dos capítulos. Mesmo assim, uma pergunta, que pode parecer intimidadora, é necessária e pertinente: por que aceitar reescrever o sucesso criado por Gilberto Braga, escrito com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, que parou o País em 1988?
“Não fiquei intimidada”, responde Manuela ao Estadão, em entrevista concedida por vídeo. Aos 47 anos, com a bagagem de sucessos como a novela Amor de Mãe e a série Justiça – ela trabalha há 30 anos na Globo -, Manuela afirma estar em uma relação íntima com a trama e todas as adaptações que ela precisa para ser levada ao ar de maneira contemporânea, mas com certo ar nostálgico para agradar aos noveleiros.
“É preciso muito estudo, ir atrás do que foi dito sobre a obra, entender todas as intenções do autor, dos atores, o que o público entendeu ou não”, diz a autora e jornalista. Ela se sente segura pela experiência de ter adaptado clássicos como A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, e Macbeth, de Shakespeare.
Veja um dos clipes da novela
Uma das grandes mudanças propostas por Manuela é ampliar as tramas de personagens secundários como Poliana e Aldeíde, sem muito espaço na versão original — centrada, sobretudo, na relação entre Raquel e Maria de Fátima e em personagens como a grande vilã Odete Roitman, o golpista César Ribeiro, o empresário inescrupuloso Marco Aurélio, o ambicioso Ivan Meireles e a frágil Heleninha Roitman.
Para alívio dos fãs da versão original, Manuela garante ao Estadão que Odete Roitman (Débora Bloch) continuará a ser uma grande vilã narcisista, assim como Marco Aurélio (Alexandre Nero) conservará a vocação para corrupto e assediador moral. Raquel (Taís Araújo) seguirá a ser uma mulher batalhadora, enquanto Maria de Fátima (Bella Campos) não medirá esforços para se casar com Afonso Roitman (Humberto Carrão) e subir na vida. E Solange Duprat (Alice Wegmann), terá sua indefectível franjinha, embora não seja mais uma it girl.
“Vale Tudo segue sendo a mesma novela. Os personagens são os mesmos. A trama é a mesma”, diz Manuela.
Se em 1988 Vale Tudo passou o País corrupto pós ditadura a limpo, a nova versão, na visão de Manuela, mostrará que o Brasil é mais “unido” do que a mídia e a voz rouca das redes sociais parecem mostrar.
“Nós, formadores de opinião, erramos ao empurrar a direita para extrema direita e a esquerda para a extrema esquerda. O Brasil é mais unido do que sentimos nos últimos anos. É nessa área comum que eu como autora quero investir”, afirma.

Taís Araújo será a batalhadora Raquel no remake de ‘Vale Tudo’, personagem que foi de Regina Duarte em 1988 Foto: Fabio Rocha/TVGlobo
Por que você aceitou fazer o remake de Vale Tudo?
Essa pergunta, para mim, é invertida. Não consigo imaginar por que não fazer Vale Tudo. Adaptar uma obra é ter uma relação muito íntima com ela. É preciso muito estudo, ir atrás do que foi dito sobre ela, entender todas as intenções do autor, dos atores, o que o público entendeu ou não. Entender como o Gilberto (Braga) e o Aguinaldo (Silva) apostaram todas as fichas na relação entre mãe e filha, algo absolutamente central na novela. Em Vale Tudo de 1988, os personagens secundários praticamente não tinham trama. O personagem Poliana, por exemplo, passa a novela inteira e não ocorre nada com ele. Quando damos tridimensionalidade a personagens secundários, trazemos a informação de que os outros importam. Essa é uma das minhas intenções. Estou feliz e instigada, e ansiosa para a estreia.
Gilberto Braga tinha muito claro o questionamento que ele queria fazer com a novela: vale a pena ser honesto em um País de corruptos? Vale Tudo de 2025 segue por esse caminho? Qual é a grande pergunta dessa nova versão?
Gilberto dizia que ouviu de um senhor a frase “quem mente rouba, quem rouba mata”. Quer dizer, não existe infração pequena. Não existe cinza, só o branco e o preto. Em um País que tem a cultura de uma zona cinzenta, é uma grande colocação. Vale Tudo segue sendo a mesma novela. Os personagens são os mesmos. A trama é a mesma.
O Brasil é mais unido do que sentimos nos últimos anos. É nessa área comum que eu como autora quero investir
Manuela Dias
Em 1988, o povo brasileiro tinha inimigos comuns: a inflação e os corruptos. Atualmente, são grupos diferentes que se digladiam por políticos e ideologias. Não caminham juntos. Essa polarização que o Brasil e o mundo vivem, de alguma forma, vai aparecer na trama? Mais claramente: a direita e esquerda.
Eu precisaria de pelo menos uma hora para te explicar isso. Você está falando de algo central, que é a conexão com o Brasil. A Globo tem um departamento, imenso e muito consistente, que encomenda pesquisas sobre o Brasil. Um grupo intenso, do qual participo muito. O Brasil é complexo, instigante e mutante. O Brasil sempre nos surpreende, e com movimentos gigantes. Quando você vê, o tsunami está pronto, tudo mudou, inclusive os valores. Como autora, me debruço nas pesquisas. E uma das coisas que temos descoberto é quanto o Brasil é menos polarizado do que a mídia e todo esse imenso movimento ‘lulanaro’ fazem parecer. Estou falando de dados. Vai parecer que sou do tipo: “ih, loucona, falou que o Brasil não é polarizado”. Não é isso. O Brasil é muito menos polarizado do que as duas última eleições fizeram parecer. O Brasil é unido em valores centrais, familiares, identitários, como a fé em Deus e a não violência. O Brasil é um País não armamentista. 78% da população já assimilou o casamento homoafetivo. Uma ótima notícia! Nós, formadores de opinião, erramos ao empurrar a direita para extrema direita e a esquerda para a extrema esquerda. O Brasil é mais junto do que sentimos nos últimos anos. É nessa área comum que eu como autora quero investir. O Brasil precisa se ver mais unido.

César (Cauã Reymond) e Maria de Fátima (Bella Campos) formam dupla de vigaristas em ‘Vale Tudo’ Foto: Fabio Rocha/TVGlobo
Há uma novela que o público espera ver e uma história que você provavelmente deseja contar. Como conciliá-las?
É a mesma coisa.
Caminham juntas?
Não tenho dúvida.
Para quem é feito um remake? Quem tem 40+ vai sentir falta dos atores originais, da entonação da Beatriz Segall, do exagero bem colocado da Regina Duarte, das pernas do Carlos Alberto Riccelli, da Lídia Brondi… A geração 30- se liga em novela de uma maneira diferente, em fragmentos, pelas redes sociais…
Para todo mundo. Histórias que sobrevivem são as que são recontadas. Isso forma a identidade do País. Ao contar e recontar sobre o descobrimento do Brasil é que entendemos que ele não foi descoberto. Vale Tudo é uma história identitária do Brasil. Quem já a assistiu terá um grande reencontro. A novela terá frases icônicas da primeira versão, easter eggs (elementos ou citações ‘escondidos’)… Não faz sentido fazer uma remake de ET e não colocar ele cruzando a lua de bicicleta, não é? A novela terá uma sensação de acolhimento do passado, mas será, claro, independente da primeira versão.
Como será a Odete Roitman versão 2025? Será uma vilã mexicana, exclusivamente passional, ou será também movida por questões sociais e políticas, como na primeira versão?
Só assistindo para saber. Não falo mais de Odete. Em breve, ela estará no ar. Ela é uma personagem icônica, continuará sendo. Odete é praticamente o ET, a lua e a bicicleta juntos.
Você não fala mais porque na primeira entrevista que você deu (para a Folha de São Paulo) foi criticada?
Porque eu já falei o que tinha para falar. Já respondi 30 vezes sobre Odete. Ela não será uma vilã mexicana, porque nada que escrevo é mexicano. Se você tiver alguma outra pergunta sobre Odete…
Me parece que Odete cabe dentro de apenas um espectro político atualmente, apesar de você ter falado que acha que o Brasil não é tão polarizado como parece…
Não disse que eu acho. Eu disse que por meio de muitos estudos, núcleos de pesquisas e de pessoas dedicadas a entender o Brasil de forma muito atual, verificou-se que houve um excesso de polarização por parte da mídia e que o brasileiro não é tão polarizado como estamos tendo a sensação nos últimos tempos. Isso é ciência social.
Odete seguirá sendo uma vilã castradora e narcisista
Manuela Dias
A Odete de 2025 ainda será aquela mulher, bilionária, que dedica boa parte da vida dela para interferir na vida dos filhos e da irmã, que implica com o fato da Raquel vender sanduíches na praia, que não gosta de olho de sogra nas festas de aniversário?
Odete é uma narcisista. Dentro dos clusters sociais, ela se identifica com os empresários. Ela é dona de multinacional, uma grande executiva. Uma mulher que se casa com um cara rico, e, depois que ele morre, decuplica a fortuna dele. Isso segue igual. Sinto que a Odete original, graças à nossa sociedade de 1988, é uma vilã. Havia apenas um motivo específico, sobre a sexualidade dela, o quanto ela era uma mulher mais velha, porém ativa sexualmente, que, em 1988, pelos valores da época, indicava um traço de perversidade. Atualmente, temos outra percepção sobre a vida sexual ativa de uma mulher de 62 anos. Sinto que aspectos que faziam a Odete ser uma vilã perversa em 1988, atualmente, podem ter uma leitura diferente. No entanto, na nova versão, Odete seguirá sendo uma vilã castradora e narcisista.

Caberá a Débora Bloch dar vida à vilã Odete Roitman, uma das personagens mais importantes da teledramaturgia brasileira Foto: Estevam Avellar/ TV Globo
Raquel e Maria de Fátima, nesta nova versão, serão mulheres pretas. O que isso muda na trama, sobretudo em relação a Odete? O racismo será posto em discussão?
Para Odete, o que importa é conseguir o que ela quer. Na história, ela quer que o filho, Afonso, se mude para Paris para tocar a TCA (empresa da família) de lá. Ela tenta manipular a Solange, mas ela não dá a menor chance de ser manipulada. Ela só passa a ‘xoxar’ o namoro de Afonso e Solange a partir daí. Quando ela vê que a Maria de Fátima topa tudo, isso se torna mais forte do que qualquer coisa. Sobre a Raquel, de alguma forma, ela sempre foi preta. Uma mulher batalhadora, empreendedora, que vai vender sanduíche na praia. Só que em, 1988, tínhamos muitos véus na questão do racismo e do machismo. Muitos personagens homens batiam em mulheres, como o Afonso e o Poliana. Hoje, é totalmente inaceitável.
Perguntei pois a Odete de 1988 certamente não era apenas uma mulher elitista, mas racista também. Provavelmente não deixaria uma menina preta se casar com o filho dela…
Não sabemos se ela não deixaria… Não haviam atores pretos na novela. Se a pessoa que toparia viabilizar tudo o que ela queria fosse preta, talvez ela deixasse. Na primeira versão, a diversidade não existe. Só há dois atores negros. Um faz papel de um menino de rua, que a Raquel chama para trabalhar – e, em 1988, o trabalho de menor não era tipificado. A outra personagem é a Zezé, que morava na casa da família do Bartolomeu, fazia jantar dez horas da noite, trabalhava sábado e domingo. Isso não é aceitável atualmente – então, ela não existe na nova versão.
Vamos servir esses personagens ao público. Marco Aurélio será o mesmo abusador, assediador moral e corrupto
Manuela Dias
Obviamente que você não quer dar muitos spoilers, mas queria saber de outros personagens importantes da trama, como Marco Aurélio, Solange, Heleninha…
Os personagens serão os mesmos, mas adaptados para o tempo atual. Mas, todo mundo que está com saudade da Solange, vai ver a Solange, inclusive de franjinha. Nossa expectativa é criar conexões com o público. Não acordo e digo: “Hoje eu vou frustrar as pessoas”. Pelo contrário. Vamos servir esses personagens ao público. Marco Aurélio será o mesmo abusador, assediador moral e corrupto. O Marco Aurélio, aliás, é uma figura interessantíssima que questiona a relação do brasileiro com a corrupção.
Solange, na primeira versão, é o que se chama de it girl, sempre preocupada no que vestir. Atualmente, a meu ver, uma pessoa focada no vestir é superficial. E não vejo Solange como uma mulher superficial, apesar dela se vestir de maneira incrível. O figurino dela é todo de brechó. É uma mulher totalmente workholic, assim como o Renato (João Vicente de Castro), dono da (agência) Tomorrow, que será viciado em remédios para desempenho.
Heleninha é uma personagem muito interessante. É uma narcisista tipo frágil. Sempre precisa de muito. Isso já vem do original. O alcoolismo é um traço, forte, dentro de uma personalidade complexo, mas não a define. É uma pessoa talentosa, mas, se olhar de forma clínica, ela é bastante desconectada da realidade. Superar o alcoolismo será uma chance para ela sair da solidão.
Em 1988 não havia celular e nem a internet comercial. Como isso altera a trama de 2025? Há, por exemplo, a cena da maionese, que é fundamental na história [Odete manda envenenar a maionese produzida pela empresa de Raquel e começa, então, uma grade mobilização para avisar todos os restaurantes para avisar que os clientes consumam o produto].
As adaptações são muitas. De natureza tecnológicas, jurídica, de valores, científicas – o alcoolismo não era considerado doença, por exemplo. A original tem uma cena de Heleninha sendo retirada de camisa de força de um bar. Estamos trabalhando em todas nelas. Não podemos deixar passar nada.

A personagem Solange será interpretada pela atriz (Alice Wegmann na nova versão de ‘Vale Tudo’ Foto: Fabio Rocha/ Globo
Você pediu alguém em específico para o elenco? Muitos atores já trabalharam com você anteriormente, como Débora Bloch, Humberto Carrão, Cauã Reymond, Paolla Oliveira, Belize Pombal…
Sou uma roteirista executiva. Participo muito. Eu fiz o processo de escalação com o Paulo Silvestrini (diretor-geral da novela), sempre alinhada ao José Luiz Villamarim (diretor de dramaturgia). Esse processo durou cerca de oito meses. Concordei com todas as escalações. Quando você pensa em chamar alguém para um papel, você já está conceituando esse papel.
Você declarou que estavam à procura de uma nova intérprete para a música de abertura, Brasil. Mas, no final, será a Gal Costa (1945-2023), como na original. Por que decidiram não mexer nisso?
Isso foi um discussão intensa, envolveu pesquisas. No fim, a Gal cantou mais forte. Resolvemos ficar com ela.
Em suas redes sociais, você fala bastante sobre a questão climática e meio ambiente. São temas que podem entrar na novela?
Sou uma ativista declarada do meio ambiente. Tenho uma filha de nove anos e o fato de me informar me leva a essa preocupação. A novela tem uma porosidade sobre a realidade. Então, esse calor intenso e todas as questões que vivemos decorrentes disso, vazam para dentro da novela. Não tem como, em um apanhado de 40 personagens, não ter nenhum que fale sobre meio ambiente. Não consigo imaginar isso! Se não resolvermos a questão ambiental, não resolveremos a questão de gênero ou o racismo, pois não dará tempo. Vivemos um tique-taque ecológico muito evidente.