A romance “Terreno e Paixão”, de Walcyr Carrasco, é um sucesso de audiência. Em sua última semana, a trama da Orbe ambientada no Mato Grosso do Sul alcançou uma média de 32 pontos, superando a antecessora “Travessia”, de Glória Perez, que registrou a pior audiência da história das novelas das nove, com 24 pontos. O resultado foi comemorado pelos executivos da emissora antes mesmo da exibição do último capítulo — programado para esta sexta-feira (19) — e consolida a recente vaga de novelas rurais, inaugurada com o remake de “Pantanal”, em 2022, e mantida com a estreia de “Renascer”, que sucede “Terreno e Paixão” na filete das nove.
O roteiro de Walcyr conta a história de Antônio La Selva, um poderoso (e inescrupuloso) latifundiário vivido por Tony Ramos. Junto à esposa Irene, encarnada por Glória Pires, o personagem comete uma série de crimes visando tomar a propriedade de sua rival, a professora Aline, representada por Bárbara Reis.
Por trás das câmeras, o cenário escolhido pela Rede Orbe foi a herdade Annalu, localizada em Deodápolis (MS). Ali foram gravadas as numerosas cenas aéreas com as paisagens do agronegócio, entre maquinários agrícolas e lavouras colossais. Assim uma vez que o predomínio hipotético da família La Selva, a herdade Annalu coleciona uma série de violações ambientais, uma vez que dano a Extensão de Preservação Permanente (APP), instalação não autorizada de drenos e pulverização de agrotóxicos em sítio inadequado.
Ingressão da herdade Annalu, em Deodápolis (MS), onde foi gravada a romance “Terreno e Paixão” / Reprodução/MPMS
De Olho nos Ruralistas teve entrada ao Termo de Ajuste de Conduta (TAC) elaborado em março de 2022 pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS), onde estão listadas as irregularidades do imóvel de 1.768 hectares. De convénio com o documento, os proprietários teriam um prazo de dois meses para executar as adequações. Quase dois anos depois, boa segmento dos passivos ambientais se mantém, entre eles a manutenção dos canais de drenagem e a construção de uma extensão de lazer dentro da APP, às margens do rio Dourados.
O imóvel está em nome de Aurélio Rolim Rocha, diretor do grupo Valor Commodities, uma das maiores empresas de plantio e comercialização de soja e milho de Mato Grosso do Sul, dona de 50 milénio hectares no estado. Aos 30 anos, Lelinho, uma vez que é espargido, foi o responsável pela negociação com a Rede Orbe, que iniciou as gravações na Annalu em fevereiro de 2023. Na ocasião, o próprio quinteiro recebeu o elenco de “Terreno e Paixão”, com recta a foto, postada em sua conta no Instagram, adoptado a Tony Ramos. A imagem aparece no destaque desta reportagem, com a extensão dedicada ao confinamento de manada ao fundo.
Os passivos ambientais são unicamente a ponta do iceberg no histórico da herdade Annalu e da família Rocha. Em uma série de reportagens, o observatório do agronegócio De Olho nos Ruralistas irá detalhar a dimensão do predomínio fundiário controlado pelo grupo Valor, além de suas relações econômicas com gigantes do agronegócio brasílio — incluindo uma divida milionária com a Seara, do grupo JBS. A próxima reportagem destaca a degradação do rio Dourados e seus afluentes pelos donos da herdade alugada pela Rede Orbe.
Desmatamento em suplente lítico justificou exórdio de interrogatório
As irregularidades ambientais da herdade Annalu foram constatadas pela primeira vez em junho de 2019, durante uma vistoria técnica realizada pelo Departamento Próprio de Escora às Atividades de Realização do Ministério Público do Mato Grosso do Sul (Daex/MPMS). A inspeção foi solicitada depois o Núcleo de Geoprocessamento e Sensoriamento Remoto (Nucleo) do órgão identificar, por meio de imagens de satélite, um provável desmatamento ocorrido em 2015 — um ano antes do imóvel ser comprado pela família Rocha. Foram esses os dados que basearam a exórdio do interrogatório social, ainda em 2018, e que levariam à assinatura do TAC em 2022.
Essa primeira estudo, iniciada em 2016, identificou que a extensão passível de averbação de Suplente Lícito (RL) correspondia a unicamente 7,45% da extensão totalidade da propriedade, inferior do mínimo de 20% exigido pela Lei nº 12.651/2012, que instaurou o Código Florestal brasílio. Dois anos depois, a família Rocha declarou o Cadastro Ambiental Rústico (CAR) do imóvel com 335,33 hectares de RL, equivalente a 20,6% da extensão totalidade da herdade Annalu. (O CAR funciona a partir de autodeclarações.)
Registro de vistoria realizada em 2019 mostra confinamento de manada na Rancho Annalu / Reprodução/MPMS
Essa zona era originalmente composta por matas de brejo, um tipo de vegetação de grande preço ecossistêmica, uma vez que é responsável por evitar a erosão do rio Dourados, que margeia a propriedade a oeste. Sem informar a data precisa, o laudo técnico do MPMS informa que trechos da Suplente Lícito foram convertidos “no pretérito, para uso recíproco do solo”. Além do desmatamento, imagens de satélite datadas de 09 de setembro de 2018 e anexadas ao processo mostram a presença de manada bovino dentro da RL, o que é proibido pelo Código Florestal.
O relatório da vistoria, emitido pelo MPMS em agosto de 2019, exigia a suspensão imediata da atividade pecuária dentro da suplente e a recomposição da vegetação desmatada. Todavia, os documentos posteriores vinculados ao TAC não detalham se as determinações foram cumpridas. O termo foi assinado em 31 de março de 2022, dez meses antes do início das gravações de “Terreno e Paixão”. Na última visitante técnica realizada pelo Instituto de Meio Envolvente de Mato Grosso do Sul (Imasul), em outubro de 2023, tampouco foram mencionadas ações específicas de recomposição de RL.
Além da pecuária convencional, em regime de pastagens, o grupo Valor Commodities utiliza a herdade Annalu para geração de manada em confinamento. Em junho de 2019, durante a primeira vistoria, foram contabilizadas 500 cabeças. Na inspeção de 2023, o gerente da herdade apresentou aos fiscais do Imasul uma solicitação de licença protocolada naquele mesmo ano, pedindo a autorização para confinamento de 3 milénio animais. O documento encontrava-se em temporada de estudo pelo órgão ambiental até a data de publicação do relatório técnico da vistoria. O mesmo funcionário afirmou ainda que os proprietários interromperam o confinamento bovino dois anos antes, em 2021.
Trecho do TAC evidencia geração irregular de manada em extensão de Suplente Lícito. / Reprodução/MPMS
Proprietários instalaram pesqueiro em extensão de proteção permanente
Na documentação relativa ao Termo de Ajuste de Conduta (TAC) firmado entre os proprietários da Rancho Annalu e o Ministério Público constam ainda outras infrações ambientais. De convénio com o laudo da vistoria técnica realizada em junho de 2019, a família Rocha declarou no Cadastro Ambiental Rústico (CAR) unicamente metade da filete de proteção permanente exigida pelo Código Florestal.
Principal limite geográfico do imóvel, o rio Dourados é um curso de médio porte, tendo uma largura que varia entre 50 e 85 metros ao longo de sua extensão. A lei determina que, para cursos d’chuva dessa dimensão, a filete de APP deve medir 100 metros de largura — contabilizados a partir da calha do leito regular do rio. Entretanto, o CAR da herdade Annalu delimitava unicamente 50 metros.
Quiosque para pescaria construído dentro de Extensão de Preservação Permanente / Reprodução/MPMS
Apesar da supressão de vegetação em zona de APP ser proibida, os técnicos do MPMS identificaram a conversão irregular de uso em alguns trechos do rio, apresentando “ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008”.
O relatório destaca ainda que, próximo ao limite setentrião da propriedade, foi construída uma extensão de lazer dedicada à pesca recreativa, ocupando uma extensão de 0,1202 hectares — equivalente a 1,2 milénio metros quadrados — dentro da APP. As instalações incluem quiosque, churrasqueira, banheiros, bancos, mesas e estacionamento. A partir de imagens de satélite, o MPMS confirma que as benfeitorias foram realizadas em qualquer momento depois agosto de 2009, período em que a herdade Annalu esteve sob gestão da comercializadora de grãos Granol. A família Rocha, proprietária entre 2003 e 2005, recomprou o imóvel em 2016, assumindo, além dos lucros da operação, seus passivos ambientais.
A retificação da filete de APP para 100 metros e a recuperação da extensão desmatada para a construção do pesqueiro foram incluídas entre os compromissos de realização do TAC. No relatório da segunda vistoria, realizada em outubro de 2023, o MPMS informa que os proprietários da Annalu anexaram ao CAR um Projecto de Recuperação de Extensão Degradada ou Alterada (Prada), visando a restauração da APP do rio Dourados. O mesmo documento aponta que a herdade aderiu ao Programa MS Mais Sustentável.
Planta identifica irregularidades em APP da herdade Annalu. / Reprodução/MPMS
Além do lazer, a comercialização de pescado é um dos principais negócios do clã Rocha. Entre as irregularidades apuradas pelo Ministério Público, Lelinho e seu primo Nilton Fernando Rocha Fruto admitiram responsabilidade pelo ramal do curso do rio Dourados e pela instalação de 54 drenos para captação d’chuva sem autorização prévia. Os equipamentos, que ocupam uma parcela da APP, abastecem diretamente os tanques de piscicultura, onde a família cria tilápias. Contamos essa história em detalhes na próxima reportagem da série.
Embalagens de agrotóxicos eram armazenadas em condições impróprias
As violações identificadas na herdade de “Terreno e Paixão” não se restringem à ocupação do solo. Os relatórios técnicos juntados ao TAC relatam que a pulverização de agrotóxicos desrespeitou a intervalo mínima em relação às áreas de preservação e habitações localizadas dentro do imóvel. Também indicam descarte irregular dos produtos químicos.
De convénio com o relatório da vistoria técnica de junho de 2019, incluso ao TAC, as zonas onde a pulverização terrestre é realizada estão localizadas em região “contígua às áreas propostas para comporem a Suplente Lícito da propriedade e distante tapume de 20 metros de áreas úmidas”. Apesar de primar que a visitante foi realizada fora do período de pulverização, inviabilizando uma estudo mais aprofundada dos impactos, o documento atesta a presença de casas da herdade situadas a aproximadamente 15 metros de intervalo das lavouras.)
Vistoria apurou estrutura inadequada para contenção de resíduos de agrotóxicos / Reprodução/MPMS
Os problemas se estendem ao armazenamento dos produtos. Fotos anexadas ao processo mostram um sitiado construído de maneira precária, talhado a acoitar as embalagens vazias de agrotóxicos. “A cobertura do repositório apresentava-se em mau estado de conservação, a construção foi edificada principalmente em madeira e alambrado e não havia sistema de contenção de resíduos”, informa o laudo. Durante a vistoria, foram identificadas duas embalagens depositadas sobre o solo, fora do repositório.
De convénio com os fiscais, o acondicionamento verificado na herdade Annalu descumpre a Norma Técnica Brasileira ABNT NBR 9843-3 em sua totalidade. Embora as recomendações do relatório incluíssem a reforma ou construção de um novo repositório, o Processo Administrativo de Séquito do TAC, assinado pelos sócios Aurélio Rolim Rocha e Nilton Fernando Rocha Fruto, continua em curso, assinalado uma vez que “procrastinado” em diversas obrigações no sistema de consulta processual do MPMS. Entre elas, o manejo adequado das embalagens de pesticidas.
De Olho nos Ruralistas enviou questionamentos aos representantes do grupo Valor Commodities, ao Imasul e à Rede Orbe. Não houve retorno até o fechamento da reportagem.
Vídeo revela predomínio agropecuário do clã rocha
Apesar da longa lista de irregularidades identificadas na herdade Annalu, não foi pelos atos contra o envolvente que a família Rocha ficou conhecida na região de Dourados. Aurélio, que tem o mesmo nome do rebento Lelinho, seu pai Nilton Rocha Fruto e seu irmão Nilton Fernando Rocha foram presos em 2006 por sonegação fiscal de pelo menos R$ 79 milhões. Depois de doze anos de processo, somente um deles foi sentenciado, Aurélio.
Na idade, o grupo familiar se chamava Plaino Verdejante. Em fevereiro de 2020, no início da pandemia, a empresa passou a se invocar Valor Commodities e os acusados pelas fraudes deixaram de ser sócios para a ingresso de Lelinho e de seu primo, Nilton Fernando Rocha Fruto. O comando, no entanto, continuou nas mãos de Aurélio e Nilton Fernando.
Segundo o site do grupo, a companhia tem 50 milénio hectares em Caracol, Deodápolis, Douradina, Nioaque, Porto Murtinho, Corumbá, todos municípios do Mato Grosso do Sul, uma empresa de aviação, seis postos de provisão de aeronaves e um setor de ativos imobiliários. A extensão de terras equivale a mais da metade do tamanho de Deodápolis, onde fica a herdade Annalu.
A dimensão desse predomínio é detalhada em vídeo publicado no meato do De Olho nos Ruralistas no YouTube. Além das videorreportagens, o observatório produz documentários sobre questão agrária, uma vez que Elizabeth e SOS Maranhão, e mantém editorias fixas sobre História e sobre as ações da bancada ruralista no Congresso.