Há exatos 40 anos, na cidade de Cascavel (PR), pouco menos de 100 pessoas participavam do encontro que fundaria o maior movimento popular camponês do país e um dos maiores da América Latina. Quadro décadas depois, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terreno (MST) está organizado em 24 estados, com 185 cooperativas, 1,9 milénio associações, 120 agroindústrias, murado de 400 milénio famílias assentadas e outras 70 milénio vivendo em acampamentos.
Em uma estimativa simples, segundo a média pátrio de 2,79 de pessoas por residência constatada pelo Recenseamento de 2022, ao menos 1,3 milhão de pessoas são integrantes e vivem em territórios organizados pelo MST.
No marco deste natalício de 40 anos, o MST vai realizar em julho o seu 7º Congresso Vernáculo, para o qual são esperadas murado de 15 milénio pessoas em Brasília.
O último evento do tipo foi em 2014, quando o movimento definiu que, para além da democratização do chegada à terreno, é preciso disputar o padrão produtivo de cultivação. Foi aí que incorporou a termo “popular” à reforma agrária que defende, reivindicando de forma mais contundente, por exemplo, os debates ambientalistas e a resguardo da agroecologia.
No evento deste ano, o MST deve trazer pontos novos ao seu programa agrário e delinear as prioridades para o próximo período, além de fazer um resgate dos seus 40 anos de história.
‘Já nasce com cicatrizes’
Para o geógrafo Bernardo Mançano, responsável, entre outros, do livro A formação do MST no Brasil (Editora Vozes) e pesquisador da entidade desde o início, o Estado e os governos são as instituições que marcam os períodos mais difíceis para o movimento. Na sua visão, o momento mais crítico do MST foi nascer.
“O movimento nasce no seio da ditadura. Ele já nasce com cicatrizes políticas de um processo que prendeu e ceifou vidas, mas ainda assim consegue ocupar territórios e debutar o processo de espacialização da luta”, afirma Mançano.
Camponeses participam do I Congresso Vernáculo, no Paraná, um ano em seguida a instauração do MST / Registo e Memória MST
O caldo que deu as bases para a instauração do MST foi o das lutas pela redemocratização na viradela das décadas de 1970 e 1980, com ocupações de latifúndios feitas por agricultores no Rio Grande do Sul. Uma das mais icônicas foi a Encruzilhada Natalino, em dezembro de 1980, que recebeu grande suporte da Igreja Católica e da população da região.
“Aqueles colonos estavam numa tentativa de sobrevivência muito concreta, certamente não pensavam no que isso viria a ser. Mas olhando no retrovisor da história, foi uma inovação do formato de luta por terreno no Brasil: a ocupação com lona preta”, ressalta Ceres Hadich, da coordenação pátrio do MST. “A Encruzilhada Natalino inaugurou um jeito de pensar a luta pela reforma agrária e fazer política que viria a ser uma das grandes marcas do MST”, resume.
Gilmar Mauro, também da coordenação pátrio, não esteve no encontro fundacional do MST em 1984, mas se incorporou logo no ano seguinte, quando completou 18 anos. Nascido na cidade de Capanema (PR), uma região de pequenos agricultores, Gilmar participou da ocupação de Marmelheiro, que em 1986 se tornaria um assentamento regularizado.
Esta foi uma das tantas tomadas de latifúndio que o movimento realizou na região Sul logo depois que surgiu. Inspirados em experiências anteriores porquê a das Ligas Camponesas e do Movimento dos Agricultores Sem Terreno (Master), os criadores do MST definiram que ele seria pátrio e teria três objetivos: a luta por terreno, pela reforma agrária e por transformação social.
Em seu I Congresso Vernáculo em 1985, MST se posiciona pelo término da ditadura militar / Registo e Memória MST
“Tempos depois, as pessoas foram entendendo o que significava isso: não era uma luta simplesmente pelo reparto fundiário”, ressalta Gilmar Mauro. “Isso é necessário, porque segmento do movimento sindical e popular no mundo acho que cometeu equívocos por separar o que considera luta econômica e luta política. Tipo movimento sindical e popular devem fazer luta econômica e partido deve fazer luta política. Um movimento que se volta para oriente viés fica puramente economicista. E um partido que não tem vínculos com a verdade socioeconômica de um país vira uma burocracia”, avalia. “São lutas inseparáveis”, sintetiza.
No seu 1° Congresso Vernáculo, em janeiro de 1985, os sem-terra decidiram atuar sob os lemas “Terreno para quem nela trabalha” e “Ocupação é a única solução”. Cinco meses depois, 2,5 milénio famílias participaram de 12 ocupações de latifúndios improdutivos em Santa Catarina.
Outdoor na rua convocava para o I Congresso Vernáculo do MST em 1985 / Registo e Memória MST
“Já no início o movimento experimentou a produção com cooperativas”, relata Ceres. “A instrução também sempre teve um papel fundamental. Percebemos que era preciso produzir nosso jeito de educar, formular uma pedagogia sem-terra”, conta, destacando a experiência das escolas itinerantes. São espaços educativos sem lugar fixo que se estabelecem dentro dos acampamentos, sendo desconstruídos e reconstruídos sempre que a comunidade é obrigada a mudar de lugar.
Em 1989 houve um debate interno sobre a possibilidade de o movimento se dividir em dois. Para Gilmar Mauro, foi um momento em que “se revelou a núcleo do MST”. “Algumas pessoas defendiam que deveria ter um movimento de assentados e assentadas e outro daqueles que não tinham terreno. O primeiro iria para as reivindicações de produção, crédito, etc. E o MST seguiria fazendo a luta por terreno”, conta.
“Decidimos que não iríamos separar, que o MST era um só e que enquanto viver uma família de sem-terra nesse país, todos somos sem-terra. Isso foi um marco fundamental na nossa história”, expõe Gilmar.
A violência, a reação e o boom do MST
Marcha histórica do MST com 100 milénio pessoas em Brasília em 1997, no marco de um ano do massacre de Eldorado do Carajás / Douglas Mansur / Registo e Memória MST
Pouco depois, o movimento enfrentaria a sua dezena mais sangrenta, mas também aquela em que se fez saber pelo Brasil. Se a violência no campo esteve presente ao longo dos 40 anos do MST, para Hadich o período entre 1995 e 2010 é aquele em que a conjugação “Estado, milícia e latifúndio se revela mormente”.
O massacre de Eldorado do Carajás, que fez do 17 de abril o dia mundial de luta pela terreno, é o mais emblemático destes episódios.
No entardecer daquele dia de 1996, murado de 1,5 milénio sem-terra chegavam ao lugar sabido porquê Curva do S, no sudoeste do Pará. Caminhando já há uma semana, pretendiam ir até Belém para reivindicar ao Incra a desapropriação de uma rancho. Nunca chegaram. Cercados e atacados por 155 policiais militares, 21 camponeses foram assassinados e 79 ficaram feridos.
Em memória dos mortos no massacre de Eldorado dos Carajás, o MST realiza jornadas de luta anuais no mês de / Amnesty International
A comoção com o ataque, que teve cenas televisionadas, foi imensa. O debate sobre a reforma agrária tomou o meio da agenda política do país. Em 1997, três marchas simultâneas convocadas pelo MST saíram de pontos diferentes do país e caminharam por murado de dois meses até chegar a Brasília no dia em que o massacre completou um ano, numa confluência de murado de 100 milénio pessoas.
“Foi histórico. Mas não foi o MST que colocou 100 milénio. Foi a sociedade que aderiu. E colocou o movimento em outro patamar”, salienta Gilmar Mauro.
Naquele 17 de abril de 1997 foi lançado o livro de fotos terrenode Sebastião Salso, sobre luta pela terreno, com uma apresentação do redactor português José Saramago e escoltado por um CD de Chico Buarque. Os três artistas doaram os direitos autorais do trabalho ao MST que, com o quantia arrecadado, construiu a Escola Vernáculo Florestan Fernandes, em Guararema (SP).
A construção da Escola Vernáculo Florestan Fernandes, referência internacional de espaço de formação política / Registo e Memória MST
Fernando Henrique Cardoso (PSDB), logo na presidência da República, se viu pressionado a produzir o Ministério do Desenvolvimento Agrário (extinto em 2016 pelo governo Temer e reinstituído em 2023 com o governo Lula). Em 1998, porquê fruto de uma demanda do MST, surge o Programa Vernáculo de Ensino na Reforma Agrária (Pronera). De lá para cá, 191 milénio jovens camponeses ingressaram em 531 cursos em todos os estados brasileiros.
É nesse período pós massacre de Eldorado do Carajás que a TV Mundo transmite a romance O rei do rebanho. Com um enredo que envolve um romance entre uma sem-terra e um quinteiro, a romance teve, na avaliação de Gilmar Mauro, “o intuito de domesticar o MST, de desfazer o conflito. Mas teve o efeito contrário. Acabou difundindo o tema da reforma agrária e o MST a nível pátrio”.
Para Gilmar, 1997 é um ano de viradela para o movimento. “Ganhamos as cidades. Principalmente as universidades. Muita gente entra para o movimento. Até surge uma termo de ordem na era: ‘reforma agrária se faz no campo, mas se conquista na cidade'”, relembra.
O prolongamento, no entanto, não fez sobrestar a violência. Para Ceres, um dos marcos da novidade trajes da repressão, acompanhando as mudanças do agronegócio a partir dos anos 2000, com o boom da exportação de commodities, os transgênicos e a financeirização, foi a morte de Keno, porquê era sabido o cultivador Valmir Mota de Oliveira.
Em outubro de 2007, aos 34 anos, Keno foi assassinado por seguranças contratados pela transnacional suíça Syngenta. Ele participava, com outras 150 pessoas da Via Campesina – pronunciação internacional de movimentos populares do campo que o MST integra –, de uma ocupação na cidade de Santa Tereza do Oeste (PR). A ação denunciava a ilegalidade dos experimentos que a empresa, uma gigante do setor de transgênicos e agrotóxicos, fazia na extensão.
Os militantes foram atacados por 40 homens armados da empresa NF Segurança. Além de Keno, a agricultora Isabel Promanação de Souza foi colocada de joelhos para ser executada. Quando o tiro veio, ela ergueu a cabeça e foi atingida no olho recta. Ficou cega, mas sobreviveu. Outros três ativistas ficaram feridos. Em 2018, a Syngenta foi condenada pelo Tribunal de Justiça do Paraná.
“O diferencial do assassínio do Keno pela Syngenta é que a gente não estava falando mais da violência do latifundiário, do jagunço. A gente estava falando da transnacional, daquela empresa que está no mundo impondo os transgênicos, que tem sede na Suíça”, caracteriza Hadich. Hoje, no lugar onde Keno foi morto funciona o Meio de Pesquisas em Agroecologia Valmir Mota de Oliveira.
As décadas de 1990 e 2000, analisa Ceres, “revelaram a violência do capital e do agronegócio e, nesta dor, nos permitiu ser acolhidos pela sociedade brasileira. Escancarou isso: são trabalhadores pobres do campo que não têm zero, que estão numa luta digna e estão apanhando, morrendo por conta disso. Foi um período que, contraditoriamente, nessa violência e nesse luto, revelou à sociedade um MST que ninguém conhecia”.
Transição para a disputa de padrão
Outra viradela na história do MST aconteceu em 2014. A agroecologia – padrão de cultivação fundamentado em princípios ecológicos e relações socialmente justas, sem uso de fertilizantes sintéticos, agrotóxicos ou sementes transgênicas – já vinha sendo incorporada pelo movimento desde o início dos anos 2000. Foi no último congresso, no entanto, que o MST consolida o entendimento de que o enfrentamento ao agronegócio é, para além da disputa pelo pedaço de pavimento, uma disputa de padrão, sobre porquê se trabalha naquela terreno.
Ação de distribuição de víveres e combate à rafa durante a pandemia de covid-19 em Florianópolis / Monte Serrat /Registo e Memória MST
“Entendemos que não faz sentido a resguardo de uma reforma agrária puramente distributivista e produtivista, ao estilo clássico. Mas que no Brasil, pelas condições características, precisaríamos prosseguir para outro tipo, sim de reparto fundiário, mas pensando de outra forma a questão ecológica, produtiva, víveres saudáveis e assim por diante”, explica Gilmar Mauro. “É um salto de qualidade imenso”, resume.
Neste ano de 2024, o 7º Congresso Vernáculo deve sistematizar o próximo salto. “Essa é uma grande expectativa”, diz Ceres Hadich: “atingir na síntese que vai indicar por onde vamos caminhar nos próximos anos”.
Edição: Nicolau Soares