Toda convocação da seleção brasileira vem acompanhada do contraditório festival das pessoas que não se importam com o time vernáculo, mas não se importam tanto, mas tanto, com tanta força, de forma realmente tão desimportante, que elas vão até a janela gritar para todo mundo saber: quem se importa! Fazem isso uma meia dúzia de vezes por ano, porque precisam lembrar que não estão nem aí, que a amarelinha é um tanto menor, que já foi, que já deu, que não é provável que vocês estão mesmo ligando para isso. Uma vez que a gente não está fazendo zero para retomar essa relação de forma mais totalizante (nem CBF, nem prelo, nem clubes, nem torcida, nem jogadores), logo vamos com o que tem para hoje de forma mais direta: o campo está devendo, e hesitar do elenco da Seleção é mais do que originário e admissível, é justo.
Para além dessa questão estrutural e geracional – primeiro porque o envolvente do futebol não tem intenções concretas de reconectar o time vernáculo aos apaixonados pelo esporte, ainda mais com um cenário de maniqueísmo político, segundo porque o próprio futebol de seleções ganha outro sentido com a ensejo do jogo e dos negócios esportivos hoje –, é provável que a gente entenda por que as pessoas de forma universal olham para a lista de jogadores que se apresentam a Dorival Júnior na Europa e não encontram o exaltação da vantagem técnica, não enxergam ali o impacto de estarem diante de uma nata que represente quem de melhor pode tratar a esfera num país em que toda garoto sonha ser jogador.
De partida é preciso concordar que a trombeta sobre a seleção brasileira segmento de um sentimento genuíno, de uma paixão avassaladora, de um afeto fundador de uma autoestima esportiva, cultural e artística que instituiu o futebol vivenciado e apresentado por cá porquê, em muitas e muitas vezes na história, o que de melhor poderia ser jogado. Éramos reis. Não é que o Brasil acordou um dia e decidiu que o caminho era ser arrogante no futebol, é que sobravam craques aos montes, vários em cada time do campeonato, tantos ídolos sem espaço de fardar num jogo de virente e amarelo. A gente levantava a Despensa com goleada e os caras estavam cá na esquina jogando o Rio-SP. O que a gente ganha topando ser só mais um time, ao nível de Bélgica e Croácia, por exemplo, para pegar os dois algozes mais recentes?
PRIMEIRO TREINO DE DORIVAL! ✅
Confira fotos da primeira atividade comandada por Dorival Júnior, nesta segunda-feira (18), no CT do Arsenal, em Londres.
📸: Rafael Ribeiro/CBF pic.twitter.com/tQzVDf4btP
— CBF Futebol (@CBF_Futebol) 18 de março de 2024
Realmente me espanta um evidente choque de normalidade que boa segmento da sátira esportiva coloca diante do atual momento da seleção, porquê se preferir a régua lá em cima, porquê se ter o time brasílio na primeira prateleira da exigência técnica, fosse mera nostalgia, projeção irreal diante dos fatos. Mas se trata do maior time de todos os tempos. A camisa amarela é aquela que, inevitavelmente, vai sempre mirar no que se tem de melhor em termos de resultado, de qualidade e de feitiço. É fácil? Simples que não.
O problema é que essa caça ao saudosismo mira numa coisa e acaba acertando em outra. Depois do vexame de tomar sete gols num jogo de Despensa em mansão, muito se questionou uma certa prepotência do país, que não teria tido a humildade de entender que o jogo evoluiu ao seu volta. Eu discordo da origem dessa teoria porque não acho que seja preciso um banho de singeleza, mas sim que se crie um envolvente cuja crédito e identidade possam dar conta de mourejar com a expectativa mais superlativa que se tem. Vale para o Real Madrid na Liga dos Campeõespara o basquete dos Estados Unidos e para tantos dos grandes campeões – conviver com a grandeza e jogar com ela, não recusá-la.
E é simples que a geração atual não é uma porcaria, pelo contrário. O Brasil continua vendo dimanar um talento detrás do outro e há ótimos valores surgindo a cada semestre. Acontece que se espera que o nível apresentado seja cima, o maior, que se chegue lá para retirar a fileira. Foram duas Copas perdidas em completo estado de validação e trivialidade para duas ótimas equipes, o melhor elenco belga de todos os tempos e uma cascuda e competitiva turma croatamas que nem chegaram na decisão (a segunda inclusive foi atropelada pela campeã) e não eram exatamente o grande rival a ser derrotado. Não adianta querer convencer o torcedor que é meio que isso mesmo, o esporte anda equilibrado, o resultado vem num pormenor, etc. É óbvio que é preciso mais.
É importante interpretar também o que o êxodo de jogadores no contexto atual tem oferecido de contraponto negativo à reunião do time brasílio, porque se por um lado os meninos estão logo mais adaptados ao esporte praticado na Europa que, via de regra, é mais próximo aos torneios de seleções, por outro acabam muitas vezes sem desenvolver maiores protagonismos ou disputar os principais títulos. O país nunca debateu de trajo o que é ter seus melhores jogadores jovens indo atuar na Ucrânia ou no meio da tábua do Campeonato Inglês. O que é ir para o maior torneio de todos eventualmente sem nunca ter sido referência para valer de camisa alguma. Quantos jogadores nas últimas três Copas do Mundo a gente pode espetar que viveram seus grandes momentos tecnicamente nas semanas do Mundial? Por que a Seleção não tem sido o momento do luz sumo provável?
No meio disso tudo, Dorival Júnior estreia com oito novatos na seleção principal, quase um terço num grupo de 26, e conta nos dedos os remanescentes da última Despensa: unicamente Danilo, Bremer (na última hora), Bruno Guimarães, Paquetá, Raphinha, Richarlison, Rodrygo e Vini Junior. Tem tanta gente a passar pelo trote de debutante quanto alguém para racontar porquê é enfrentar uma seleção europeia num jogo valendo, no eterno retorno à dificuldade de se gerar lideranças e lastro num vestiário que se encontra, quando muito, uma vez por mês. A lista não empolga, e o mais flagrante é pensar que ninguém grita por uma grande exiguidade, nossa marca registrada naquela sensação que sempre foi de exuberância.
No termo, a partir dessa semana o novo treinador tem uma missão complicada, porque tripla. Ele precisa entregar competição depois do inútil ano de 2023, quando nem Ramon, posto sabe-se lá por que, nem Fernando Dinizefêmero e sem urgência, deixaram qualquer legado de disputa. Precisa descobrir um time, já que à exceção de Vinicius Junior, o único titular integral do grupo, é uma convocação majoritariamente de pessoas ainda coadjuvantes. E precisa dar passos consistentes rumo ao porvir, por exemplo, confortando Rodrygo e firmando Beraldo e Endrick em posições acessíveis para que o amanhã comece agora e os meninos se formem jogadores de escol, de trajo. No meio disso, nos mostrar que há, sim, um futebol digno de seleção brasileira, não importa se partindo de um sentimento projetado ou pesado demais, mas que se impõe, que está oferecido, e não se pode voltar detrás no país de Pelé, Mané, Zico, Ronaldo e tantos outros artistas. A ver o primeiro passinho no sábado, direto de Londres (e não custava zero se esforçar para ser cá também).