Voltemos brevemente ao “Frankenstein” (1931) por James Whale. Enquanto o médico faustiano reúne todas as peças necessárias para completar sua geração, ele pede ao seu servo Fritz a importante tarefa de roubar um cérebro da universidade. Quando o capanga entra furtivamente na instituição, comete o erro de não levar um cérebro saudável, mas sim um que pertencia ao corpo de um criminoso. Na adaptação de Whale do romance de Mary Shelley, a psique é uma certeza enquanto o corpo se torna um mistério para o testemunha (sabemos porquê o monstro se comportará, mas não qual será sua semblante inimaginável). No entanto, era previsível que uma adaptação de Frankenstein imaginada por Yorgos Lanthimos não passasse pelo romance original, mas sim por “Pobres criaturas” de Alasdair Gray, obra em que o corpo renasce simplesmente para compreender novamente as peculiaridades do psiquismo, leitmotiv indiscutível da filmografia do diretor.
No papel, o mais recente filme do cineasta heleno é um filme delirantemente impraticável. “Pobre Creatures” é uma comédia excessiva em todos os sentidos, uma ópera rock sem rock cuja pomposidade invade cada troço artística da proposta. A retrato de Robbie Ryan hiperboliza o já hiperbolizado uso de grandes ângulos em “O predilecto”, tocando em alguns quadros uma dimensão impressionista mais típica das histórias em quadrinhos do que do cinema. A música do novato Jerskin Fendrix encapsula perfeitamente aquele autômato e psique circense do universo cibervitoriano de Lanthimos em uma trilha sonora situada entre o onírico e o sintético. A diretora opta por uma comédia cada vez mais corporal exibida por meio de uma monumental Emma Stone, disposta a entregar cada secção de seu corpo à razão. A atriz, junto com um fascinantemente despudorado Mark Ruffalo, dão a esta proposta sexual maluca a conquista de ser uma das comédias mais atípicas dos últimos anos.
Mas além de sua superfície excessiva, “Pobres criaturas” propõe uma tradução para a fantasia de todas as preocupações temáticas que sempre pairaram sobre a obra de Lanthimos. Tanto as experiências semióticas sobre linguagem e confinamento em “Cínico” quanto os dilemas sobre a carnalidade por trás dos códigos sociais de “O predilecto” Eles têm suas reminiscências nesta adaptação. Sempre seguindo os passos do Prometeu moderno, Lanthimos retrata o inusitado de re-compreender o mundo através da re-compreensão de porquê o corpo se relaciona com ele. Nesta espécie de “puerícia” imóvel, a maturidade da protagonista não se materializa na sua evolução física, mas sim ideológica.
“Pobres criaturas” Torna-se assim uma (re)invenção dos horrores do capitalismo, da monogamia e do patriarcado através de uma Emma Stone em jacente aprendizagem. A maturidade gradual da infantilizada Bella Baxter provoca a infantilização dos homens hipoteticamente maduros que compõem o seu ecossistema social. Lanthimos rompe com o romantismo de “Frankenstein” de James Whale, porque agora ser capaz de gerar vida não exalta o varão, muito pelo contrário. Explorar o humanismo a partir do pathos é mais uma vez a melhor arma do cineasta heleno, embora às vezes as questões sejam abordadas na ponta dos pés. Poder-se-ia pensar que o dispositivo visual parece distanciar-nos da natureza sociológica de Lanthimos – discordo daqueles que acreditam que leste é o seu filme mais conseguível – ou pelo menos que o dispensa de se justificar com um pouco mais de exalo. Mas é inegável que Yorgos já circula pelo cabaré de Hollywood porquê Pedro pela sua moradia, priorizando a diversão maluca a qualquer vitória da aura filosófica.