Neste Sant Jordi, espera-se que mais de um milhão e meio de catalães comprem um livro e, muito provavelmente, a maioria deles não decidirá qual deles até que estejam em frente à secretária ou na livraria. Romance, tentativa ou biografia? Um clássico ou o mais recente best-seller? A oferta é muito variada. Perguntamo-nos o que interessava a um dos nossos melhores escritores, Miguel de Cervantes (1547-1616), no seu tempo.
Seus gostos literários transparecem em toda a sua obra. Principalmente, no sexto capítulo da primeira secção do Quixote, que contém a famosa cena do assalto à livraria de Alonso Quijano. Ao retornar despojado das primeiras andanças, a governanta e a sobrinha, que não aguentam mais sua loucura, pedem ao capelão e ao fígaro da povoado que entrem em sua mansão e queimem aqueles malditos livros que lhe secaram o cérebro.
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O que se segue é um recreativo escrutínio em que o padre decide quais títulos são dignos de serem salvos e quais irão para a fogueira. O padre provincial – “varão literato”, que estudou em Sigüenza – atua porquê inquisidor. Durante a sua inspeção, o responsável leva o padre a fazer um julgamento muito delicado da literatura da era, que não é outra senão a do próprio Cervantes.
A primeira coisa que labareda a atenção é que o maneta de Lepanto odiava traduções, pois o padre diz que se encontrar um original do poeta Ludovico Ariosto (1474-1533) irá honrá-lo, enquanto qualquer edição em espanhol irá direto para a pira, e a segunda coisa é que ele não ficou impressionado com os best-sellers, que na era eram livros de cavalaria.

Primeira secção de ‘Dom Quixote’ (1605)
Dom Olivante de Laura (1564), Hicarnia Florismart (1556), O cavaleiro Platir (1533), O Cavaleiro da Cruz (século XVI)…, por orientação do padre, que os considera “pesados, mentirosos e arrogantes”, a governanta atira pela janela os títulos mais populares daqueles anos.
Eles só dão perdão a Os quatro de Amadís de Gaula (c. 1508), al Palmerino da Inglaterra (1547) já Tirant lo Blanc (século XV). Sobre ele Amadis Cervantes diz que é o primeiro livro de cavalaria da história, o que não é verdade (é mais provável que tenha sido o Livro do Cavaleiro Zifardo cânone de Toledo Ferrand Martínez), mas pouco importa, pois foi ele quem realmente moldou o gênero.
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Na verdade, houve inúmeras continuações, sendo uma delas a já mencionada Palmerino da Inglaterra (o segundo perdoado), romance em português que o padre compara à verso de Homero. Evidente, nem As sergas de Esplandián (c. 1510) nem outros que também pertencem à linhagem Amadís são salvos do incêndio, demonstrando que mesmo portanto era vasqueiro que as segundas partes fossem boas.
E simples, Tirant lo Blancdo valenciano Joanot Martorell (c. 1410-1465), que é a obra culminante da literatura catalã e, em muitos aspectos, um precedente da Quixote. O padre chama-lhe “o melhor livro do mundo”, porque “os cavalheiros comem cá, dormem e morrem nas suas camas, e fazem um testamento antes da morte, com essas coisas que faltam a todos os outros livros deste género”.

Envoltório de ‘Os cinco livros do insubmisso e invencível cavaleiro Tirante el Blanco’, primeira tradução para o espanhol de ‘Tirant lo Blanc’, impressa por Diego de Gumiel.
O que Cervantes queria manifestar, e todos os especialistas concordam com isso, é que o génio de Tirant lo Blanc É que seus personagens são feitos de mesocarpo e osso e vivem no mundo real, embora suas histórias sejam incríveis. E a mesma coisa acontece com ele Quixoteque, embora permaneça realista – foi a inspiração dos realistas do século XIX – é referto de imaginação, confundindo a fronteira entre a veras e a ficção e apresentando uma versão ficcional da vida.
Livros que podem ser vividos, enfim, são aqueles que o responsável do livro nos recomendaria. Quixote.