22 de fevereiro de 2024 16h55
Um dos grandes filmes da última edição do festival de Cannes chega aos cinemas. E A superfície de interesse do inglês Jonathan Glazer, fundamentado livremente no romance homônimo de Martin Amis. Uma obra hipnótica com uma narrativa que à sua maneira é contundente ao recontar a monstruosidade do Imolação. Uma obra-prima absoluta, que por trás das aparências vai além do tema abordado e afeta a percepção da contemporaneidade.
Trabalha na representação das pequenas coisas do cotidiano, que muitas vezes são coisas belas, e dá grande densidade a uma narrativa mínima por meio de um enorme trabalho de direção: incisão e formação de planos, trabalho de profundidade de campo e edição, fundamentais em estugar o ritmo. Um filme que em alguns aspectos parece campesino e edificante, só que conta a história do cotidiano do comandante do campo de extermínio de Auschwitz, que morava ali perto com sua esposa e filhos, em uma linda mansão com jardim. Um paraíso pequeno, luminoso, verdejante e florido. Detrás da parede avistam-se vagamente as chaminés dos fornos crematórios. Quase removido do campo de visão. E muito já foi dito sobre isso: você também pode retirar o que vê. Na verdade, até mesmo o que você faz pode passar despercebido. Você pode fingir que não viu, que não entendeu.
Se é verdade que o cinema é olhar, cá ele se torna uma questão-chave, analisada desde uma perspectiva muito original, que inclui também a questão do reprimido.
O andaime que mantém tudo unificado é um manifesto formal que se torna contido através da representação da regularidade do mal. Ou melhor, a regularidade do muito convencional, que quando se torna radicalmente regular torna-se a regularidade do mal e, portanto, do mal integral. Ou seja, não exclusivamente a sua futilidade, mas antes uma futilidade feita de uma grande, ordenado, pedante, quase obsessiva regularidade de atos, gestos, situações. As ações do diretor do acampamento – desde as pequenas alegrias familiares até os encontros com os colegas, passando pela rotina diária do almoço – sua aparente leveza e simetria, na verdade zero mais são do que formalidades. E o trabalho formal do filme reflete isso: A superfície de interesse é porquê se estivesse enquadrado do início ao término numa geometria perfeita de formas, que constitui também, vice-versa, a representação do lado perfeito, do estereótipo do quadro campesino, muito porquê da família ideal veiculada pela iconografia nazista da era, avito daquele hoje proposto pela publicidade. Porque hoje tem muito a ver com isso.
Esta regularidade que combina osmoticamente a forma fílmica com a formalidade da vida dos muito gentis e educados nazistas da boa família de Auschwitz, indo além das aparências, revela um tanto muito grande, que chega até hoje. Quando uma regularidade obsessiva se aproxima da tranquilizadora monotonia do mecanismo perfeitamente eficiente, ela expressa, a longo prazo, um tanto terrível e teratológico: no rescaldo da prisão de Nelson Mandela, Robert Kennedy, num dos seus discursos mais famosos, lembrou aos estudantes sul-africanos brancos de da Universidade da Cidade do Cabo, que o sábio à eficiência levou aos campos de concentração nazistas. Hoje estamos mais uma vez no sábio da assepsia eficiente. E quem se sente atraído por esta ideologia estética, que rejeita do campo de visão tudo o que não é projecto e sem ondulações e, consequentemente, expressa ódio e pânico por tudo o que a contradiz, tudo o que é dissemelhante? Supra de tudo o ódio contra aqueles que são diferentes? Obviamente a pessoa mais generalidade e comum. Em uma vocábulo, regular. Todos nós, potencialmente.
A retrato do filme é composta por uma estética ultradefinida, onde tudo parece em relevo, porquê numa imagem em subida definição. O ultradefinido é perfeito para esta ideologia: tudo é evidente, evidente, não deve ter zero por trás disso que contraste com (falsas) certezas tão tranquilizadoras. Mas a verdade é que por detrás desta ostentação do definido, desta parede dupla – a estética da imagem lisa e sem ondulações e a concreta filmada pela câmara, que esconde e portanto retira o que não se quer ver – existe esconde um horror indefinido e infinito: as chaminés, os crematórios. Um cenário encantador e luminoso esconde brutalidade e negrume.
O mal, tão perto, tão longe. O problema das nossas sociedades, para transpor do impasse, é justamente ir além da superfície de interesse que dá título ao filme. Não é exclusivamente um aviso para ir além das aparências tranquilizadoras ou convenientes, além dos véus, para ver o horror de perto. A situação atual é inerente à disseminação da extrema direita, que dita cada vez mais a agenda das forças políticas democráticas, quando elas próprias não detêm as alavancas do poder.
Mas é também uma questão de reconstruir ou redescobrir outra forma de ver e sentir, para além de qualquer pensamento único, incluindo o daqueles que se opõem à extrema direita e ao imediato do liberalismo tecnocrata. Precisamos voltar a um olhar profundo e extenso, que aceite a natureza contraditória da verdade que nos rodeia.
Não é por possibilidade que no filme de Jonathan Glazer surgem interferências – visuais e sonoras – neste pensamento único, que assume a forma de uma regularidade extrema. Glazer é na verdade um experimentador. Isso ficou muito explícito em seu longa-metragem anterior, o incrível Sob a pele (2013), onde para expressar a grande, indefinível e incontrolável inquietação contemporânea, relançou em forma fílmica a experimentação visual e sonora de certos filmes de ficção científica e de terror anglo-americanos dos anos sessenta e setenta dos quais é paradigmático 2001: Uma Odisseia no Espaço por Stanley Kubrick.
O cineasta trabalha cá sobre buracos negros repentinos na imagem, transformando a imagem luminosa do jardim numa espécie de negativo e conseguindo assim uma psicodelia da negrume, que ao mesmo tempo que transmite inquietação, subverte o horror da homologação estética, insinuando que por trás ‘está outro coisa, que tudo pode ser subvertido.
Mas certamente não tranquiliza. Do primórdio e até o término. O filme abre e fecha exclusivamente com o áudio de uma formação de Monica Levi que evoca gritos humanos desesperados. E não tranquiliza no final, quando, com um incrível salto no tempo, Glazer filma Auschwitz hoje, com os faxineiros empenhados em lavar ou polir a vitrine que contém os sapatos dos deportados. Regularidade, novamente.
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