E sei que, segundo o paixão tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.
Luís de Camões
Para que sirva uma trova? A pergunta é antiga e a resposta primeira e imediata é que não serve para zero. Ninguém enche a ventre com a trova, ninguém enriquece com ela, nenhum país equilibra a balança mercantil exportando poemas e estes zero podem contra a miséria e as guerras que vão preenchendo os noticiários. A trova é um passatempo de inúteis, um entretém das classes baixas e uma afetação de acadêmicos e intelectuais.
Não obstante, um dia amamos e precisamos de um verso porquê a boca precisa de pão. Um dia um país revolta-se e faltam as palavras primeiras e essenciais. Um dia alguém morre, um dia somos felizes, ou infelizes, um dia temos um rebento, ou ficamos velhos, ou damos por nós derrotados pela vida, ou nos convertemos, ou temos de discursar perante a país e só a trova nos serve, só ela nos pode ajudar.
Escrevi num romance (a trova ao meu alcance) que os poetas são lugares por onde os poemas passam. É válido para eles e também para os demais — artistas, amantes, profetas, estadistas, lunáticos, filósofos, ricos e pobres, gente porquê a gente. Dos Salmos ao Alcorão, de Dante a Shakespeare, de Rumi a Daniel Faria ou a Tolentino de Mendonça, a trova são perguntas misturadas com respostas, muitas vezes confundidas, sem que saibamos quais são umas ou as outras. Os poemas que mais nos tocam são, tantas vezes, os que menos entendemos, pelo menos com a razão. O sentido da voz é também o seu esquina, o mistério foge e repto.
O Dia Mundial da Trova foi instituído em 1999 pela UNESCO com o objectivo de concordar a variedade linguística através da frase poética e aumentar a oportunidade de as línguas ameaçadas serem ouvidas. Pretende-se com a efeméride promover a leitura, a escrita, a publicação e o ensino da trova em todo o mundo e, porquê diz a enunciação original, “dar um novo reconhecimento e impulso aos movimentos nacionais, regionais e internacionais de trova”.
A língua portuguesa não está ameaçada, foi-se espalhando e implementando através da história e da geografia e muito do que é se deve a um dos nossos maiores escritores. Somos um dos poucos países que associaram o dia vernáculo a um poeta, Luís Vaz de Camões, que cantou a pátria e os seus feitos, mas também os amores que foram os seus e vão sendo os nossos, porque os glosamos. Terá nascido em 1524, embora a data precisa suscite dúvidas. Segundo o próprio, teríamos esse dia de morrer e perecer, mas cá estamos nós para o contrariar, por mais que as entidades oficiais se esforcem por obedecer-lhe. Os poemas, as palavras e o seu esquina íntimo suplantam todos os discursos oficiais, por isso vivem e multiplicam-se, por isso chegaram até nós.
Neste Dia Mundial da Trova convido os leitores a um treino bizarro e anacrônico. Peço-lhes que escolheram um poema e o decorem, termo por termo, sílaba a sílaba. Contaminem-se dele e declame-no a alguém que nutriz e que o saiba ouvir, mesmo que o não entenda. Finalmente, é esse o design dos poemas.
À memória de Nuno Júdice.
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