Março 23, 2025
“A bolha vai rebentar”. Já há 80 denúncias de casos de assédio e abuso sexual no meio musical português #ÚltimasNotícias #Portugal

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Tudo começou há uma semana com uma publicação de Liliana Cunha nas redes sociais acusando o pianista João Pedro Coelho de violação. Mas as partilhas nas redes sociais e o número de mensagens que recebeu de outras mulheres levou-a a apresentar queixa na PSP e a criar um canal de denúncias. Porque acredita que só dando a cara é possível impedir que estes crimes continuem a acontecer

Assédio sexual, assédio a menores, agressão física e psicológica, violação, violação com droga, stalking (perseguição), stealthing (não utilização de preservativo sem consentimento do/a parceiro/a). São já 80 as denúncias realizadas por mulheres através do email criado para o efeito na sequência da acusação feita publicamente por Liliana Cunha ao músico João Pedro Coelho.

“Todos os dias chegam testemunhos e denúncias”, confirma Liliana, que, uma semana depois da primeira publicação nas redes sociais, ainda se surpreende por o caso ter tomado esta dimensão. Sabia que havia outras vítimas, que a sua história não era a única, mas, apesar disso, não estava preparada para a quantidade de mensagens e comentários que começou a receber, não só de solidariedade como de outras mulheres que revelavam as suas próprias experiências com João Pedro Coelho (e não só):  “Não conheço uma mulher que tenha tido uma experiência positiva com este homem”; “Nunca me cheguei a encontrar com este tipo. As mensagens dele foram completamente nojentas, tive de o bloquear por me sentir assediada com o conteúdo das mesmas”; “Bloqueei-o há uns meses e não estava errada. You’re not alone”; “Infelizmente também fui abordada por ele, mas felizmente apercebi-me do que se tratava antes de dar para o torto”. “O meu Instagram já estava entupido de mensagens, não estava a conseguir lidar com tudo”, conta Liliana Cunha à CNN Portugal.

Foi outra música, Maia Balduz, que tomou a iniciativa de abrir um canal de denúncias e criar um mail (testemunhasdamusica@proton.me) para recolher todas os testemunhos que estavam a surgir. Poucos dias depois, já é possível fazer um breve balanço. As denúncias referem-se maioritariamente ao meio musical, o que se entende por ter sido neste meio que a notícia foi mais partilhada. “Só estamos a considerar as denúncias dentro do meio musical, não temos meios para uma coisa mais ampla”, justifica Liliana. E também estão a ignorar aquelas que lhes parecem mais dúbias. Apesar disso, têm já 80 mensagens validadas, com 18 nomes de abusadores referidos, sendo que a maioria das mensagens (50) refere-se a João Pedro Coelho. O jazz e o fado são os géneros musicais com mais casos. Entre os casos relatados, há queixas formalizadas no Ministério Público ou na Polícia Judiciária contra três nomes, algumas que já estão em processo há dois anos.

“Sentimos que estas mulheres querem ganhar voz e dar corpo à dor que está reprimida”, diz. “O que estamos a fazer, para já, é recolher os testemunhos e a avaliá-los, estamos a trabalhar com advogados para perceber que tipos de crimes estão em causa e como validar as denúncias”, explica. “O que sabemos é que em 90% destes casos a queixa-crime não gera pena, ou seja, ou é retirada ou silenciada com dinheiro ou não se prossegue por falta de provas, muito poucas queixas dão origem a uma condenação”, admite. Esse é um dos fatores que desencoraja as mulheres a prosseguirem para a justiça. Por isso, Liliana e as outras ativistas estão a tentar empoderar as sobreviventes para que avancem para uma queixa-formal, se for esse o seu desejo, encorajando-as a recolher as provas e a procurar apoio legal. “É preciso ter um caso sólido para avançar”, diz, admitindo que “é provável que saiam daqui denúncias coletivas” contra os nomes mais citados. “Temos denúncias de casos que envolvem menores, isto é muito grave.”

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Liliana, que já apresentou queixa na PSP do seu caso, não quer entrar numa “caça às bruxas”. “Sei que houve uma manifestação contra o João, não participei nem me associei a nenhuma iniciativa”, deixa claro. “O meu objetivo não é vê-lo crucificado em praça pública, é mesmo legal.” Não se trata de cancelar ninguém. Trata-se de fazer justiça, diz: “O meu objetivo é ver o João no tribunal, para que admita que me violou e proceda ao ressarcimento dos danos causados, psicológicos e físicos, não só a mim, mas às outras pessoas”.

Além disso, tem ainda outra batalha: quer que a lei portuguesa reconheça o “stealthing” como crime. A prática de retirar proteção contra doenças sexualmente transmissíveis e gravidezes indesejadas sem o consentimento do/a parceiro/a, é já punível como forma de agressão sexual em alguns países e Liliana está a preparar uma campanha nesse sentido. “Se conseguir isso, já terei um objetivo alcançado.”

A coragem de dar cara: porque é preciso parar estes comportamentos

O caso remonta a 2023. Liliana Cunha, oriunda de Guimarães, música e DJ (com o nome artístico Tágide), atualmente com 32 anos, começou a falar com o músico João Pedro Coelho no início desse ano, através das redes sociais, até que decidiram encontrar-se e, depois de alguns encontros, envolver-se intimamente. Ela impôs como condição o uso do preservativo, mas, a determinada altura e sem o consentimento dela, o músico retirou o preservativo. Liliana conta que se sentiu violada e saiu dali em choque, tomou contraceção de emergência e falou com algumas amigas, mas na altura não apresentou queixa.

Só mais tarde se apercebeu das mazelas que o acontecimento lhe tinha provocado e teve acompanhamento psicológico, mas não era algo que pudesse esquecer, conta. Recentemente, soube que duas amigas tinham recebido mensagens do mesmo homem e também teve conhecimento de outras histórias de assédio e violação envolvendo pessoas que conhecia. Percebeu, então, que devia falar. Que alguém tinha de falar para evitar que outras mulheres passassem pelo mesmo. “Existe ainda muito ódio por parte da sociedade” e muita vergonha imputada às mulheres. “Pensei muito antes de falar. Resolvi o que tinha a resolver com as pessoas da minha intimidade, com a minha família, para poder falar publicamente.” Ainda é necessária coragem para uma mulher dar a cara, admite. “Ainda chamam as mulheres de loucas.”

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Na segunda-feira, 4 de novembro, escreveu nas redes sociais uma declaração em que contava “de forma sucinta e com poucos detalhes” a sua história, revelando apenas o primeiro nome do violador: “O João decidiu atrair-me para uma noite de prazer que acabou comigo a correr às seis da manhã (…) completamente cheia de nojo e tristeza. Não posso continuar a ser complacente com pseudo-músicos que acreditam que o seu ego é uma porta aberta para magoar os outros. Fui gravemente ferida e afetada e o nome dele não pode continuar incógnito porque sei que ele continua a aplicar as mesmas táticas a outras mulheres”, escreveu.

“Tive cuidado nas palavras, não me quis expor muito nessa primeira mensagem.” Rapidamente começaram a surgir reações e, no meio musical, facilmente se percebeu de quem se estava a falar. Nesse mesmo dia, Liliana recebeu uma mensagem da advogada de João Pedro Coelho, exigindo que ela apagasse todas as publicações e ameaçando processá-la por difamação – o que até agora não aconteceu. Liliana falou com um amigo jurista para perceber o que devia fazer. Também falou com a APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que não só confirmou que ela estava “a fazer a coisa certa” como lhe garantiu todo o apoio. Foi então que, “empoderada por todas as mensagens que tinha recebido”, decidiu fazer queixa na PSP, acusando o pianista de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual. “Passei três horas na esquadra da Cedofeita, no Porto, onde moro. Tive sorte porque o polícia foi muito simpático, ouviu-me, ajudou-me a perceber se os atos poderiam ser considerados crimes, apesar de já terem passado 18 meses, disse-me para recolher todas as provas. A queixa foi encaminhada para o Ministério Público, aonde terei de me dirigir daqui a três semanas, e foi-me atribuído o estatuto de vítima”, explica.

A CNN Portugal tentou, sem sucesso, entrar em contacto com o músico João Pedro Coelho, de 31 anos, considerado por muitos um dos melhores pianistas de jazz da nova geração em Portugal. Integrou o quarteto de Ricardo Toscano, o Trio de Jazz de Loulé, Canções de Ilha Deserta, com Marta Garrett, o Pedro Moreira Quinteto, o Sexteto do Hot Clube e a Orquestra Assintomática. Nos últimos anos colaborou com músicos de relevo como Nelson Cascais, Teresinha Landeiro e Bruno Pernadas, e tem atuado nos principais palcos nacionais e internacionais. Perante a repercussão que o caso começava a ter nas redes sociais, João Pedro Coelho reagiu, publicando uma breve declaração em que reclama a sua inocência e garante que as acusações são falsas. “Para reposição da verdade, e reparação da ofensa ao meu bom nome e dos danos morais e materiais já causados ao meu bom nome pessoal e profissional, usarei os meios legais que estão à minha disposição”, escreveu. O músico desativou os comentários a esta publicação, o que não impediu que várias pessoas tenham publicado comentários noutras publicações no seu perfil.

“Não estás sozinha”: uma espécie de #MeToo no meio musical português

“Que caia um por um”. “Não estás sozinha”. “A bolha vai rebentar”. “Denunciem. Queremos nomes”. As caixas de comentários de Liliana, Maia e outras mulheres que, entretanto, se associaram a este movimento estão cheias de palavras de agradecimento e encorajamento, vindas sobretudo de mulheres, mas também de alguns homens. A história começou a ser partilhada, chegando aos meios de comunicação social. Ao jornal Público, Liliana foi mais longe, quis contar os pormenores da violação “para que todos entendessem do que se estava a falar”: foi a primeira vez que falou do “stealthing”. “Foi o momento em que me senti mais fragilizada. Mas era importante. Ao início, estava um bocado empoderada pela adrenalina. Mas tem sido duro reviver a história toda, está a voltar tudo.”

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“Será normal que o que aconteceu à Tágide esteja a ressoar com todas nós?”, perguntou uma mulher numa publicação nas redes sociais. Tornava-se claro que o problema não se resumia ao comportamento de uma única pessoa. “A maior parte das mulheres que passou pelo meio do jazz sofreu em algum momento assédio, em vários casos essas mulheres eram menores. Esmagadas pelo estatuto dos professores/músicos que nos abordam vamos desistindo da música ou tentando aceitar que esta é a realidade possível. Enquanto estudantes sentimo-nos num lugar de inferioridade em relação ao professor e ficamos bloqueadas, encurraladas”, escreveu essa mesma mulher. “A realidade musical falocêntrica em Portugal faz-nos ter medo de agir, o meio é pequeno, e sabemos que ao lado dos grande-vultos vamos ser sempre as diminuídas, as ridicularizadas. E é triste que seja preciso acontecer algo grave a tanta gente para isto ser notado, considerado e para ser feito algo a respeito. Não é que os diretores das escolas de jazz não saibam que estas coisas se passam. Sabem, mas decidem ignorar, como homens e como amigos dos ofensores.”

João Pedro Coelho foi professor na escola de jazz do Hot Clube até 2021. Na semana passada, a direção da instituição publicou também um comunicado afirmando que “em caso algum foi cúmplice ou pactuou com comportamentos menos próprios por parte dos seus professores”. E ilustrava isso mesmo lembrando que no ano letivo de 2021/22 foram identificadas duas situações de assédio “que originaram uma reação pronta por parte da direção no apuramento das responsabilidades, tendo levado ao afastamento dos professores em causa”. Depois disso, foi criado um código de conduta, assim como um canal de denúncias e gabinete de apoio ao aluno. A direção da escola disse ainda não ter conhecimento de nenhuma queixa ou denúncia em curso, “estando disponível para atuar de imediato em conformidade com as informações que chegarem”. O comunicado poderá ter descansado algumas consciências, mas só vem dar razão a quem diz que estamos perante um problema muito mais amplo. “Sistémico”, lê-se em algumas publicações. “Sempre circularam histórias destes, sempre se soube sobre uns e outros”, diz uma delas.

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Numa publicação muito comentada, o músico Filipe Melo admitiu: “As notícias relacionadas com o meu meio, o jazz português, atingem onde mais doi. Os nomes que leio nos relatos do jornal são amigos de longa data, e é inevitável sentir uma sensação de completa desolação, perda e agonia. (…) Há que dizer com todas as palavras que o meio da música, em particular o meio do jazz, é um meio patriarcal, um meio profundamente homofóbico e onde o bullying e o assédio encontraram terreno fértil. (…) Este lado sombrio do nosso meio manifesta-se de inúmeras formas, desde a humilhação nas jam sessions ao assédio vindo de posições de poder, ao conluio silencioso, ‘ah, ele é mesmo assim, não há nada a fazer’.  (…) Todos ouvimos histórias, todos compactuámos, de uma forma ou de outra, com estes comportamentos.”

Liliana prefere não ir por esse caminho. Será o meio musical mais tóxico do que outros meios? Não tem assim tantas certezas. Os abusos de poder e a cultura de silêncio que existe em torno deste tipo de comportamentos atravessam a sociedade. “Todos os meios podem ser tóxicos, este é o que eu conheço.” Recorda que em 2021 surgiram várias denúncias de mulheres no meio audiovisual (cinema e televisão) que acabaram por dar em nada: “Mas ninguém deu a cara, isso faz toda a diferença”. Tem esperança que desta vez seja diferente. Será este, finalmente, o início do #MeToo português?

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Se for vítima de assédio, abuso ou qualquer outro caso de violência, pode pedir ajuda à APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima:

Poderá contactar a APAV gratuitamente através da  Linha de Apoio à Vítima: 116 006 (dias úteis, das 8h às 22h).

A APAV tem também uma rede nacional de 18 Gabinetes de Apoio à Vítima (GAV), representada em 25 localidades portuguesas. Os GAV oferecem um apoio presencial, telefónico ou online.

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