Dir-se-ia que Rupert e Alex teriam tudo para nunca resultar uma vez que parelha. Ela é rebelde, ou uma vez que assume a própria Sara Barradas que lhe dá corpo e espírito no espetáculo, “ela é disrupção”. Da incontinência verbal ao sabor pelas pequenas transgressões, Alex tem em Rupert o mais perfeito oposto: ele é a ordem, gosta de números (tanto que até é contabilista) e de ter as coisas nos sítios certos, nunca lhe passando pela cabeça ir contra as regras da sociedade e da família.
Porquê o paixão não se explica, os opostos atraem-se com tamanha paixão que depressa estão a viver juntos e a discutir a cor com que vão pintar o quarto do recém-nascido que esperam. E se será menino ou moça, e que nome lhe vão dar.
Chegado o grande momento, a felicidade contagiante dos emergentes papás é irremediavelmente assombrada pela perda. O recém-nascido nasce morto e o caminho que se segue é profundamente doloroso, com Alex mergulhada na voragem da perda e a roçar a loucura, e Rupert a empreender um luto tristonho e paciente face a toda uma vida que se desmorona.
Se acreditares muito (sem original, Tudo é provável se você pensar bastante sobre isso), peça da atriz e dramaturga britânica Cordelia O’Neill, é uma tragicomédia romântica distinguida em 2022 nos Offies (os prémios para as produções Desligado West End), que conquistou o encenador Flávio Gil, tanto do ponto de vista profissional uma vez que do pessoal.
“Foi das melhores peças recentes que li. É um texto pleno de camadas, que conforme fomos trabalhando íamos descobrindo, e que mesmo usando uma linguagem mais contemporânea é de uma enorme riqueza”, salienta o encenador. Por outro lado, o drama vivido por Alex e Rupert não é completamente estranho a Gil. “Pelos meus 10 anos, a minha mãe perdeu a Patrícia, filha que teve uma passagem muito breve pela vida, murado de um mês e meio. De notório modo, ao encenar esta peça estou a fazer alguma catarse e a honrar a memória da Patrícia que está sempre comigo.”
Caracterizada por um ritmo vertiginoso e uma grande intensidade emocional, Se acreditares muito é um duelo para os atores. “A peça passa-se na cabeça de um pai que não chegou a sê-lo, com as memórias a sobreporem-se e a atropelarem-se umas às outras. Isso dá um ritmo frenético à peça, nomeadamente ao nível das emoções que os atores vivem e nos fazem viver ao longo de perto de hora e meia”, explica o encenador.
De notório modo, isto “é um treino de resistência para dois atores”, sendo que o principal duelo “é levar todas essas emoções vividas para além do treino” e fazer um espetáculo de teatro capaz de mexer com todo o tipo de emoções de uma plateia.
Sara Barradas julga mesmo ser “impossível não gostar da peça porque, de uma forma ou de outra, ela é capaz de nos tocar, independentemente de sermos alguém que perdeu um rebento ou de sermos pais ou mães”. Diogo Martins acompanha a sua parceira em palco: “mesmo não sendo pai, tenho os meus sobrinhos, e a peça faz-nos mourejar com a dor da perda e pensar naqueles de que tanto gostamos.”
Radiante por ter juntado “a equipa certa” para retirar do texto todas as potencialidades (destaque para o cenário modular, e zero realista, de Eurico Lopes), Flávio Gil confessa ainda a felicidade de ter narrado, 20 anos depois de se terem publicado nas filmagens de uma telenovela da TVI, com “dois dos melhores atores da nossa geração, a Sara e o Diogo”. E eles justificam plenamente a escolha, revelando uma cumplicidade pungente para dar vida a Alex e Rupert.