Uma sátira geral às eleições europeias é a de que constituem vinte e sete eleições dominadas, quase exclusivamente, por questões de política interna de cada Estado-membro. A proximidade das eleições legislativas de março e a situação de termos um Governo minoritário ainda a palpar terreno parecem estar, todavia, a solevantar a relevância dos temas europeus na agenda mediática. Esta é uma boa notícia, indiciando que esta campanha não se cingirá à discussão dos fundos europeus, porquê costuma ser tradição. Apesar de tudo, cremos estar a ver ao maravilha insólito de europeização de questões que pertencem, em primeira risca, à conhecimento dos Estados. Por outro lado, vemos, com alguma consumição, a degradação e a transformação da Missiva de Direitos Fundamentais da União Europeia em arma de lançadura político, desacompanhada de qualquer estratégia minimamente harmónico com a sua posição institucional e normativa, enquanto montão positivado dos direitos fundamentais dos cidadãos europeus que reflete as tradições constitucionais comuns aos Estados-membros.
Sebastião Bugalho, o cabeça de lista pela Coligação Democrática, apresentou porquê uma das suas bandeiras eleitorais a introdução do recta à habitação na Missiva dos Direitos Fundamentais. Reconhecendo que a habitação é uma conhecimento estadual (e não da União), considera que esta é uma medida simbólica que permitiria “colocar em prática soluções que venham resolver [a crise da habitação]”. O objetivo da proposta parece ser dual: “universalizar” – por outras palavras, exportar para outros Estados-membros – um recta que é reconhecido, desde 1976, pela Constituição portuguesa; exigir à União Europeia que corresponda aos anseios da população residente em Portugal na solução de uma crise que já não é só interna, mas também europeia.
Em Portugal, a constitucionalização do recta à habitação de pouco ou zero serviu, no seu confronto com o recta de propriedade. Universalizar o padrão português, no seu estado atual, unicamente garantirá que, no confronto entre liberdades clássicas e direitos sociais, as primeiras continuarão a ter primazia, tanto mais que é conhecida a preferência teleológica do Tribunal de Justiça da União Europeia pelas liberdades de circulação, sendo um tanto incipiente a sua jurisprudência em material de direitos sociais. Será mais um caso paradigmático em que, porquê defende Samuel Moyn, a linguagem dos direitos fundamentais traduz a incongruência entre retórica e verdade. Incluir o recta à habitação na Missiva, complementando a densificação que já consta do seu item 34.º, n.º 3, ou mesmo do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, zero acrescenta às competências da União nesta material.
Em sentido próximo, o Conjunto de Esquerda – secundado, entre outros, pela cabeça de lista às europeias pelo Partido Socialista, Marta Temido – reagiu criticamente à repudiação da proposta parlamentar de voto de saudação à solução do Parlamento Europeu sobre a inclusão do recta ao monstro na Missiva dos Direitos Fundamentais, um passo que qualificou porquê “fundamental para a resguardo da liberdade, da paridade, da justiça e da saúde sexual em toda a União Europeia”.
A União Europeia não é um Estado. Não é uma comunidade política de fins ilimitados. Tem as competências que os Estados lhe atribuíram, entre as quais não se encontram nem as políticas de habitação, nem o monstro. Cada Estado-membro preserva não só a sua existência política, mas também as suas características, tradições, cultura e identidade nacionais. Da inclusão do recta ao monstro e do recta à habitação, nesta vertente alargada, na Missiva dos Direitos Fundamentais não resultaria qualquer transferência de conhecimento nestes domínios para a União. Longe de fundamental, o passo, seria, no importante, simbólico e, supra de tudo, contraproducente, ao produzir expetativas legítimas nos cidadãos baseadas na ilusão de que a União seria responsável pela implementação de políticas de saúde reprodutiva e de habitação nos Estados.
Introduzir um recta na Missiva não tem o mesmo significado de constitucionalizar direitos fundamentais nas constituições estaduais. O contexto de emprego da Missiva é restringido, nos termos estritos do item 51.º, ao passo que o catálogo de direitos fundamentais vinculativo incluso aos Tratados se limita a refletir as obrigações internacionais e as tradições constitucionais comuns aos Estados-membros. Oriente é o resultado de a aprovação da Missiva exigir a vontade unânime dos povos europeus organizados porquê Estados. A Missiva não é, por esta razão, um instrumento adequado a uma visão progressista dos direitos fundamentais porquê ferramentas de transformação social. O seu rumo é ser o mínimo denominador geral, no qual se inclui o recta à habitação condigna, mas já não o recta à habitação com a amplitude que alcança reconhecimento na Constituição portuguesa. É, por outro lado, discutível se as tradições constitucionais comuns não incluem já o núcleo importante de um recta a um monstro permitido e seguro, nomeadamente depois da adesão da União Europeia à Convenção de Istambul.
Importa ainda salientar que o Parlamento Europeu não é competente para rever a Missiva dos Direitos Fundamentais; unicamente lhe compete sancionar resoluções não vinculativas que promovam a inclusão de novos direitos na Missiva – porquê já sucedeu no pretérito, designadamente em 2022, com o próprio recta ao monstro, na sequência do acórdão Dobbs, do Supremo Tribunal federalista norte-americano. A ulterior ratificação, em todos os Estados-membros, da inclusão na Missiva do recta ao monstro e do recta à habitação não passa de uma quimera: a Polónia e Súcia criminalizam o monstro, e dificilmente uma Itália liderada por Georgia Meloni apoiaria tal iniciativa; da mesma forma, o recta à habitação não é constitucionalmente reconhecido em vários Estados-membros.
Não discutimos o simbolismo da inclusão na Missiva dos Direitos Fundamentais do recta à habitação e do recta ao monstro (e da sua influência reflexa porquê parâmetro suplementar de escrutínio de atos da União). Mas zero é mais eficiente a retirar força normativa a cartas de direitos fundamentais do que a assumida vontade política de as transformar em simples proclamações simbólicas. A melhor forma de proteger o recta ao monstro e o recta à habitação é através de políticas públicas. Mais do que novas proclamações supranacionais, estes direitos necessitam, urgentemente, de concretizações políticas, e não de “aleluias jurídicos”.