David Almeida não encontrou filas na manhã deste domingo, na Escola Básica Manoel de Oliveira, na zona Ocidental do Porto. Escolheu a mesa número nove e demorou menos de um minuto a continuar. É a primeira vez que vota em Portugal numas eleições europeias.
A grande novidade desta consulta é a desmaterialização dos cadernos eleitorais: os eleitores portugueses podem deslocar-se a qualquer mesa do país para votar. Mas os cidadãos europeus com dupla nacionalidade, uma vez que David, já antes podiam fazer uma escolha: o país de voto.
David é luso-francês. Pode votar no círculo eleitoral de Portugal ou no de França. Sempre votou pela França. Mudando-se para Portugal, poderia continuar a fazê-lo. Satisfazer-lhe-ia verificar as disposições práticas para os franceses votarem a partir de Portugal.
Escolheu votar em Portugal. Na manhã deste domingo, apresentou-se uma vez que membro de uma comunidade com diversas escalas: União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde, Porto, Portugal, União Europeia. “As decisões [políticas] tomadas no dia-a-dia afectam o bairro onde eu moro, as pessoas ao meu volta, o que está a intercorrer nas escolas, nos hospitais…”
Ana Furtado, da junta de freguesia, estava à ingressão a ajudar a orientar quem aparecia para votar. Não dava por filas a formar-se em torno de nenhuma das onze mesas de voto instaladas naquela escola. Nas eleições anteriores, amiúde via concentrarem-se eleitores na mesa associada aos nomes começados pela letra “m”. “Existem ainda muitas Marias neste Portugal.” Agora, zero. Agora, é só escolher a menos concorrida e continuar.
Pequena turbulência
Não foi sempre assim. Registou-se alguma turbulência por volta das 11h30. Explicou o Ministério da Gestão Interna, em transmitido, que houve “uma situação de actualização de segurança do sistema pré-agendada, que, tendo coincidido com um dos picos de concorrência de eleitores às urnas, provocou, durante qualquer tempo, um abrandecimento na operacionalidade do sistema”. Todavia, depressa tudo voltou “à plena normalidade.”
De todo o lado, porém, chegavam ecos de uma eleição ordeira. Sem delongas.
Ana Costa
Bruno Silva, por exemplo, mora em Torre de Moncorvo. Está a gozar o fim-de-semana prolongado com três amigos em Albufeira e votou na escola secundária lugar. “Foi muito rápido”, relata aquele bolseiro de investigação, de 29 anos. “A continência tem sido elevada. Penso que é positivo darem mais liberdade às pessoas.”
Fred Rocha mora no Barroca. Sempre que há eleições, faz “uma romagem democrática à Póvoa de Varzim”. Desta vez, aquele rede desenvolvedor de 42 anos foi despreocupado passar uns dias com amigos a Espanha. Estando perto da fronteira, cruzou-a e votou em Elvas. “Foi muito tranquilo. As pessoas foram muito simpáticas. Para quem está nas mesas também é dissemelhante. Pela primeira vez, estão a receber eleitores de outros sítios.”
Outro exemplo: Diana Roble vive em Lisboa e costuma viajar até ao Porto para votar. Leste domingo, aquela professora universitária de 35 anos votou com o namorado, no Liceu Camões. “Fomos juntos. Ele costuma votar lá. É muito perto de moradia. Fomos a pé.”
Também houve eleitores que se encontravam perto de moradia e mesmo assim aproveitaram as conveniências da mobilidade. Liliana Pinto vota na freguesia de Campanhã, no Porto. A socióloga passou o domingo com a família e foi votar à Escola Básica e Secundária de Canelas, em Gaia. “Demorei, literalmente, dois minutos.”
David Almeida também não votou na Universidade Católica do Porto, uma vez que nas legislativas de Março. Pegou na bicicleta, foi tomar pequeno-almoço a uma confeitaria do outro lado da freguesia e experimentou votar na Escola Básica Manoel de Oliveira.
Identidade versus cidadania
Cada europeu com dupla nacionalidade tem a sua história e a de David começou há 40 anos, em Rennes, no noroeste da França. Cresceu em Toulouse, no sul. Estudou Engenharia Agrónoma em Paris, no setentrião. Conheceu a esposa, Mariana S., de nacionalidade brasileira, a trabalhar em São Paulo. Ainda viveram juntos em Paris, mas ela “cansou-se”.
Resolveram testar a vida em Portugal. Nos seus tempos de estudante, Mariana fizera um intercâmbio em Coimbra e adorara a experiência. “Ela veio em 2019 para o Porto. Eu ia e voltava – ainda trabalhava lá.” Apanhados pela pandemia de covid-19, foram prolongando a experiência.
Já fizeram amigos. Já tiveram uma filha. Já compraram um apartamento. “A gente gosta muito daqui”, afiança David. “A gente teve a sorte de fabricar uma rede social muito rápido e pode trabalhar de onde quiser. O Porto tem uma dinâmica perfeita de vida na cidade, multiculturalidade, possibilidades culturais, aproximação ao mar.” Pelo menos para já, a mudança não faz com que David se identifique mais uma vez que português.
Os pais partiram muito jovens para França. Pouco falavam em português com ele nos seus primeiros anos de vida. Era pequeno quando se separaram. Casaram-se com franceses. De repente, David só ouvia falar gaulês, já não só na escola e nas actividades de tempos livres, mas também dentro de moradia. Foi já adulto, a trabalhar no Brasil, que desenvolveu a língua. “Sua língua define muito a sua cultura, né? Tenho amigos portugueses cá e noto que as nossas referências [culturais] são muito diferentes.”
Apesar de ter desenvolvido imerso na cultura francesa, faz-lhe mais sentido votar agora por Portugal. “Para mim, votar não é uma questão de identidade, é uma questão de cidadania. Eu não sinto que tenha uma identidade portuguesa, mas sinto-me um cidadão português. Eu tenho um cartão de cidadão. Eu moro cá. Eu acompanho muito o que acontece em França, mas não moro lá.”
É um grande entusiasta da União Europeia. “A gente esquece, muitas vezes, que significa silêncio. Alguns países europeus sempre estavam em guerra uns com os outros.” Não lhe parece uma união perfeita, longe disso. “A União Europeia, para mim, é tipo um enlace. Pode ter a tentação de transpor quando as coisas são mais difíceis, mas é mais bonito lutar para manter vivo. Tem dificuldades porque é um projecto muito multíplice.”