Nos dias que antecedem as marchas populares, há porquê que um despertar dos bairros lisboetas. Da Madragoa a Santa Engrácia, há uma cidade que se mostra na Avenida, brilhando ao som de Lisboa não sejas galicismo, de Amália Rodrigues. É uma cidade que assim se mantém viva na memória e que ninguém quer perder.
De fora, chegam perspectivas diferentes. Há poucas semanas, escrevia o O país que Lisboa morre de sucesso, referindo o esvaziamento de população e da vida de bairro. O cláusula reconhece, porém, que cidade está mais arranjada, acumula prémios enquanto sorte turístico e deslumbra os visitantes que a escolhem para viver.
De facto, nas últimas duas décadas, a vaga de restauração urbana salvou prédios inteiros da ruinoso, mas a degradação do património continua, em alguns casos com perda irreversível. A lista é extensa: inclui palácios espalhados por toda a cidade e edifícios conventuais que esperam obras urgentes, para que edifícios singulares não se percam para sempre, ou para que a oferta de habitação aumente e Lisboa possa albergar novos habitantes.
Um dos casos mais evidentes de esquecimento da cidade está à vista de todos, no Cais do Sodré. Trata-se de um conjunto de edifícios com as janelas deixadas abertas, expondo o interno à degradação da chuva e do vento húmido do rio. É o quarteirão que limita a Terreiro de São Paulo a sul, tão importante para racontar a história da cidade, que quero primar.
Porquê primar um conjunto de prédios pombalinos, com tantos palácios em ruínas? Porque o quarteirão da Terreiro de São Paulo é dos poucos que mantiveram as características da arquitectura pombalina. Foi com quarteirões assim desenhados que Lisboa se reergueu do terramoto de 1755, com as visionárias, quase futuristas estruturas anti-sísmicas dos prédios.
Visto de repente, parece um quarteirão porquê tantos outros naquela zona, com telhados e as mansardas milimetricamente alinhados entre si, a fazer ruas simétricas, racionais e iluministas, entre o Tejo e as colinas lisboetas.
Um olhar mais sengo, porém, revela o que rareia no resto da cidade pombalina, ou que já não existe de todo: são as janelas em guilhotina, que se abrem de ordinário para cima; são os azulejos pombalinos, as ferragens e a marcenaria, a mostrar porquê seria a cidade reconstruída.
Também importante é o “toque com o pavimento”, isto é, o figura do nível térreo e dos vãos das lojas de rua. Ao contrário do que se vê numa baixa pombalina que conheceu vários ciclos comerciais, de lojas que se foram renovando, ali, as fachadas das lojas ficaram impecavelmente preservadas, a seguir ainda os desenhos originais dos edifícios.
Há não muito tempo, aquele nível térreo fervilhava de vida e com todo o tipo de lojas, restaurantes e bares, de que é exemplo o nostálgico Moca Tati, entretanto deslocado para outra zona da cidade. Seguiu-se um demorado deserção de todos aqueles prédios. A vida urbana ali desapareceu, enquanto se espera o progresso de um projecto de restauração, que mais parece ser de resgate de todo um conjunto monumental.
Passar à volta daquele quarteirão é, assim, uma experiência triste e dolorosa. É um conjunto de prédios tão incontornável na localização mediano, entre a base do elevador da Bica e o mercado da Ribeira: turistas passam à sua volta porquê se de uma porta giratória se tratasse, mas sem poder permanecer, por mais que desejassem.
Fazer no quarteirão da Terreiro de São Paulo uma extensão do Museu da Cidade, a racontar a história da Lisboa pombalina, não seria excesso. Em vez disso, as janelas abertas ao vento aceleram a enumeração decrescente para a ruinoso ou para a descaracterização. Tudo isto acontece à vista de todos, numa cidade que mantém vivas as marchas, e muito do seu património construído. Do que se está à espera?