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Lisboa foi a primeira cidade do país a criar um cemitério para animais. Em 1934, a estrutura, de foro privado, passava a funcionar no interior do Jardim Zoológico. Desde então, nasceram cemitérios em Santa Maria da Feira, Lagos e Castelo Branco. E os tempos mudaram. Não só a população de animais de companhia tem aumentado significativamente nas cidades (dados do Sistema de Informação de Animais de Companhia indicam que, entre canídeos, felídeos e furões, existem quase 1,85 milhões de animais na região de Lisboa e Vale do Tejo), como estamos perante “um avanço civilizacional em relação ao animal de companhia, que deixou de ser encarado como um ser vivo com uma representatividade instrumental para ter uma representatividade emocional e vinculativa”, nota Pedro Emanuel Paiva, provedor dos animais de Lisboa desde 2022. É desse avanço que surge “a possibilidade de fazer o luto, através da criação da figura do cemitério”, proposta do Partido Socialista (e projecto sobre o qual a autarquia já estaria a trabalhar), aprovada por unanimidade na reunião da Câmara Municipal de Lisboa de 26 de Junho. Inspirado no exemplo do Zoológico, o executivo procura agora “um terreno apto” para o projecto, que terá de começar a construir do zero, tanto em termos de configuração como de regras de funcionamento. O processo ainda levará muito tempo, mas, no futuro cemitério, o funeral de um cão ou de um gato será “quase taco a taco ao de um humano”, antevê o provedor. Fomos saber mais.
Como vê a criação de um cemitério para animais de companhia em Lisboa?
É uma resposta importante a necessidades cada vez mais na ordem do dia, no que toca ao respeito não apenas pelos animais, mas pela dor dos seus tutores. Há esta mudança e este avanço civilizacional em relação ao animal de companhia, que deixou de ser encarado como um ser vivo com uma representatividade instrumental para ter uma representatividade emocional e vinculativa. Daí vem a possibilidade de fazer o luto, através da criação da figura do cemitério. Há, ainda, outro fenómeno importante, que é, quando o animal morre, podermos ter os chamados dias de nojo.
O que obrigaria a uma mudança legislativa.
Sim. Já houve algumas mudanças no passado, como o facto de poder-se acompanhar o animal ao veterinário e isso ser justificado em termos laborais. Ainda assim, no caso do falecimento, ainda não houve essa mudança. É um caminho a fazer.
Como deve ser um cemitério de animais? Que características deve ter?
Deve localizar-se numa zona tranquila, ter amplitude suficiente para dar ao animal uma última morada condigna, ter pontos de água, acessos externos facilitados e espaços cuidados (por exemplo, não serem em terra para não haver lama quando chove), enfim, toda uma série de características que os próprios cemitérios para humanos têm. Aquilo que recomendei, enquanto provedor, é que seja formado um grupo de trabalho para pensar nessas e noutras questões, constituído por pessoas que, além de especialistas em matérias de solos, etc., sejam também cidadãos conscientes de que uma sociedade só pode evoluir quando o respeito pelo animal se coloca ao nível do respeito pelo ser humano.
E como será um funeral neste cemitério?
Quase taco a taco ao de um humano. Em Lisboa, já existe a cremação individualizada [por empresas privadas]em que as cinzas do animal podem tornar-se numa árvore ou então ser guardadas. É uma forma de luto, mas que não acontece se a pessoa não tiver capacidade económica. Neste caso, o animal vai para um crematório comum, o da Casa dos Animais, em que o serviço é gratuito para residentes e tem um valor simbólico para quem vive fora de Lisboa. Portanto, isto é todo um avanço que vamos fazer, com a figura do cemitério municipal.
Mas no cemitério será possível cremar?
Tudo isto ainda tem de ser estudado, pelo grupo de trabalho. Mas, do que tenho conhecimento, o cemitério não vai ter um crematório individualizado para animais.
A estrutura vai receber apenas para cães e gatos ou também outras espécies?
É mais um tema a ser discutido.
Mas qual é a sua posição sobre isso?
A minha posição é que as pessoas têm legitimidade para estabelecer vinculação com qualquer espécie. Muitas vezes, é como na relação entre a criança e o peluche, que muitas vezes representa a sua segurança perante o afastamento dos pais. A evidência diz que pode haver vinculação com um cão, um gato ou um pássaro. Enquanto provedor, o respeito pelo ser vivo é aquilo que mais defendo.
Os animais vivem connosco nas cidades há décadas e, no entanto, só agora se está a pensar em criar um cemitério municipal. Porquê?
São necessidades contemporâneas evolutivas e cada vez mais expressivas, felizmente. É um processo de evolução da malha social que inclui o respeito pelos animais como caminho para a harmonia do ser humano com o ambiente que o rodeia. Há muitos anos que Lisboa tem o cemitério de animais de companhia no Zoológico, naturalmente com características diferentes e cujo acesso está mais indicado a pessoas com algum poder de compra, mas isso não chegava. Um cemitério municipal vem preencher parte dessa lacuna, no entanto, se for apenas um, é relativamente fácil prever que se esgotará em pouco tempo. Em meu entender, a solução deveria ser aplicada em parceria com os municípios da Área Metropolitana de Lisboa, por exemplo, onde se instalariam espaços com igual objectivo.
Quão importante é a existência de um cemitério nos processos de luto?
O processo de luto dos animais de companhia é bastante complexo. Em linhas muito gerais, um dos problemas de não existir um cemitério como a última morada de um animal de companhia é o sentimento de perda ser muito mais doloroso. O tutor não tem um local para visitar, onde sabe que o seu amigo repousa em paz e condignamente. É como quando um ser humano tem de fazer um enterro de caixão vazio, apenas como simbolismo, pois o corpo desapareceu. Agora imagine que nem isso seria possível. O luto é luto, é dor. Um cemitério animal é um factor muito importante nesse processo.
A evolução do pelouro do Bem-estar Animal para um pelouro autónomo, com vereação exclusiva, seria um verdadeiro sinal de preocupação.
Como começou a sua relação com os animais?
Exactamente pela morte. Estive muitos anos na Guarda Nacional Republicana, fui militar de carreira. E durante dez anos, este pastor alemão [Tico] salvou-me a vida duas vezes, encontrou mais de 400 pessoas desaparecidas – fiz missões internacionais com ele, trabalhamos no controlo de imigração ilegal, tráfego humano, etc. O momento da partida dele [em 2012] foi muito difícil para mim e isso não é muito bem encarado pelas instituições. Não me consegui adaptar, não consegui nem o momento do luto que eu desejava nem o reconhecimento institucional daquilo que é a dor da perda de um animal que significa muito para nós. Portanto, deixei a instituição, fundei uma associação sem fins lucrativos [Pet B Havior] para homenageá-lo, criei projectos únicos em Portugal em torno dos animais, nomeadamente, sobre terapias que são feitas em tribunal, em escolas, etc., para apoiar crianças e jovens, para que se criassem mais evidências quanto à importância da relação entre animais e pessoas. Sou autor de seis livros sobre o tema… No fundo, esta questão do luto fez com que eu tenha seguido este caminho até ter chegado a provedor [em 2022].
Como provedor dos animais, quais são os assuntos que têm estado mais sob a sua atenção ultimamente?
É claro que existem prioridades, no entanto, dado estar tanto por fazer, torna-se ainda mais difícil fazer essa priorização. Por exemplo, neste momento temos uma campanha de sensibilização para com os animais explorados para implorando Há outras mais importantes? Sim, mas esta não pode crescer como está a crescer, temos de travar o fenómeno ou corremos o risco de assumir proporções como outras que estamos a atacar e que são já de uma complexidade muito densa. Quando chegamos a esse ponto, as soluções exigem mais tempo e diferentes respostas legais. Um bom exemplo é a resposta à necessidade de abrigar e cuidar de um animal de companhia quando o seu dono é internado, tema em que estamos a trabalhar há meses e meses. Felizmente temos conseguido dar resposta a várias situações, mas é um trabalho que exige cada vez mais foco e mais meios. A evolução do pelouro do Bem-estar Animal para um pelouro autónomo, com vereação exclusiva, seria um verdadeiro sinal de preocupação sincronizada com a necessidade real de resolução de problemas. Teria orçamento próprio, equipas próprias e uma estrutura funcional mais do que pertinente para as questões dos animais. Mas, não existindo com esta configuração, não podemos baixar os braços, trabalhamos com o que temos, sem esmorecer.
E o problema do abandono?
Os abandonos são um flagelo, principalmente na altura das férias. Quanto mais população, mais animais de companhia, logo, mais probabilidade de abandono. A Provedoria tem várias iniciativas nessa área para tentar minimizar o problema e trabalha em estreita relação com outros organismos da autarquia, mas é preciso ir mais longe, muito mais longe.
Há peso nas palavras. Falamos em animais de estimação, domésticos, de companhia e há ainda quem prefira o inglês, pet. Defende alguma terminologia?
Pet, animais de companhia, patudos, bigodinhos… São tudo palavras numa sociedade que vive demasiado agarrada precisamente a palavras. Enquanto provedor – e enquanto defensor da causa animal desde que me conheço –, há apenas uma palavra que destaco e sempre destacarei: respeito. Se respeitarmos os animais, respeitamos o seu direito à tranquilidade, à felicidade, à harmonia e ao amor. Se o caminho não é este, não me peçam para fazer outro, pois não sei, nem quero.
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