Março 31, 2025
o curioso caso do cinema em ruínas em Santa Clara

o curioso caso do cinema em ruínas em Santa Clara

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Nesta reportagem:

I – Um sonho nascido nos primórdios do cinema em Lisboa 
II – A história por detrás do Cine-Estrela: uma vez que um parelha cá chegou? 
III – Os filmes de Charlot, os gelados, o “bolo podre”… e mais animais dentro de sala
IV – O pretérito nos graffitis de “Traumatismo”
V – O término do Cine-Estrela

“A minha tia até parava o trânsito. Usava o cabelo loiro, longo, e ia de salto cumeeira projetar os filmes.” É uma memória evocada por Miguel Simões num domingo de manhã, na Feira das Galinheiras, onde vende edredões e atoalhados. A sua tia Josefa, por todos conhecida por “dona Zefinha”, era, em conjunto com o “tio Zé”, o marido, quem geria um espaço antes de grande valimento para a Charneca do Lumiar, na freguesia de Santa Clara. Esse espaço zero mais era do que o único cinema que ali existia: o Cine-Estrela.

Miguel Simões, sobrinho dos donos do Cine-Estrela, é feirante nas Galinheiras. Foto: Líbia Florentino

O Cine-Estrela foi um dos muitos “cinemas piolho” que surgiram na cidade de Lisboa no século XX – cinemas precários que se disseminaram nos bairros mais afastados do meio da cidade, onde os bilhetes eram baratos, as cadeiras de pau e nem sempre havia as melhores condições, uma vez que o próprio nome indica.

Ali, a população da Charneca do Lumiar passou a poder rir-se à custa do Charlot e deliciar-se com filmes indianos. Não havendo oferta cultural na zona, foi uma família de vendedores ambulantes que trouxe o cinema para a Charneca do Lumiar, “Zefinha” e “Zé”.

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Foi em 1968.

Hoje, oriente lugar zero mais é do que uma ruinoso no Campo das Amoreiras, com letras onde se inscreve ainda o nome, que fazem logo lembrar as estrelas de Hollywood. Os mais velhos que ali moram ainda se lembram, os mais novos já muito ouviram falar do Cine-Estrela.

Depois de cinema, seria transformado numa sala de eventos para casamentos ciganos, e há quem recorde ainda uma discoteca africana. Até que foi votada ao desarrimo, nos anos 1970, quando outras salas de cinema também fechavam com o emergência das cassetes VHS.

cine estrela Santa Clara charneca do Lumiarcine estrela
Fotos: Registro Municipal de Lisboa/Líbia Florentino

Pertence agora à Igreja Filadélfia, cristã, a quem o cinema foi doado pela família proprietária (outra, que não “Zefinha” e “Zé”) para que ali se construísse um meio de dia. Não se sabe ao visível quais as motivações da doação a esta instituição, que relação teria esta família com a igreja, unicamente o que queria ver dele feito: o tal meio. Mas o prédio está sujeito a algumas restrições de construção, devido à proximidade à pista principal do Aeroporto de Lisboa, conforme explica a Câmara Municipal de Lisboa. E zero ali aconteceu ainda.

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O pastor Jorge, que pertence à Igreja Filadélfia, esclarece que ainda há dois herdeiros que detêm uma segmento dos terrenos – a quem não conseguimos chegar para mais esclarecimentos. O que se sabe é que “não está zero projetado”, confirma o pastor.

De porta fechada, essa estranha ruinoso, sem telhado, permanece expectante no extremo setentrião da cidade de Lisboa, já praticamente na fronteira com o município de Loures.

cine estrela
Foto: Líbia Florentino

Na cabine de projeção, estaria sempre “dona Zefinha”, com o “macaquinho Chico”, ao ombro, um macaco a sério. Ou logo acompanhada pelo tio Zé, por quem o macaco Chico morria de ciúmes, ao ponto de um dia o ter arranhado da cabeça aos pés, conta-se.

São memórias que foram recuperadas no Festival TODOS de 2021 e 2022, quando oriente espaço, o velho cinema, voltou a abrir-se para a comunidade e projetar filmes.

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Mas não são as únicas.

O Cine-Estrela terá simples portas, no Campo das Amoreiras, no ano de 1968. Mas, para perceber toda a história, há que recuar a finais do século XIX, a uma outra Lisboa, que não só crescia, uma vez que recebia, pela primeira vez, a sétima arte: o cinema.

Foto: Registro Municipal de Lisboa

No dia 18 de junho de 1896, pelas 20h45, o animatógrafo estreava-se no Real Coliseu de Lisboa, na rua da Palma. Tal uma vez que acontecera em dezembro de 1895 em Paris, quando os irmãos Lumière projetaram o primeiro filme mercantil, pretérito numa estação de comboios, a reação foi de espanto.

Desse dia em diante, o cinema tomou de assalto as cidades em todo o mundo. Em Lisboa, novos operadores e máquinas foram aparecendo em salas uma vez que o São Luís e o Teatro D. Amélia.

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Mas se, no início do século XX, o meio de Lisboa fervilhava com os novos filmes de Hollywood, o mesmo não acontecia nos bairros mais afastados do meio. E é neste contexto que começam a surgir os chamados “cinemas piolho”.

O primeiro cinema piolho da cidade terá sido o Salão Lisboa (do qual letreiro ainda resiste), na rua da Mouraria, que abriu portas em 1915. Nele, era proibido entrar sem sapatos, pelo que os miúdos da Mouraria arranjavam um estratagema para conseguirem testemunhar ao filme: um deles comprava bilhete e entrava com sapatos e depois atirava-os pela janela para que o próximo pudesse entrar, e assim sucessivamente. Numa reportagem do Observador de 2020, assinada pelo crítico de cinema Eurico Bastos, fala-se destes espaços sui generis da cidade do século pretérito.

O Salão Lisboa hoje. Foto: Inês Leote

Ao longo dos anos, foram abrindo mais: o Cinema Popular, em Marvila; o Cine Oriente, na Penha de França; o Max, no Cimalha do Pina… 

E, simples, o Cine-Estrela. 

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Já a história cronológica do Cine-Estrela é difícil de traçar.

Mas houve quem tenha escavado muito fundo, desvendando segredos.

Foto: Raquel Belchior

Em 2021 e 2022, o Festival TODOS esteve presente no território de Santa Clara. Durante uma visitante técnica à freguesia, Raquel Belchior, da equipa do festival, reparou naquele prédio desprezado e espreitou pelo buraco da sua fechadura. Percebeu que a tela do cinema estava incólume.

“Foi instantânea a vontade de lá entrar e a perceção de que era um lugar peculiar que merecia ser investigado…”

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A Igreja Filadélfia cedeu-lhes o espaço para que lá pudessem desenvolver alguma ação no contexto do festival. Foi logo que perceberam que, para além de cinema, o Cine-Estrela fora também moradia.

“Percebemos que aquele espaço tinha sido verdadeiramente habitado, tinha vivido lá uma família”, explica Raquel. “E isso foi um fator determinante para olharmos para aquele espaço de uma forma dissemelhante, é dissemelhante trabalharmos um sítio cuja função era só de entretenimento e perceber que, para além desse fator, havia o fator moradia.” 

Quem lá viveu, enfim? Já os conhece: José e Josefa, tios de Miguel Simões que hoje vende na Feira das Galinheiras.

Ela vinha de Alcochete, ele da Serra da Estrela, e, durante anos, terão percorrido o Ribatejo com fitas de filmes e máquinas de projeção até se instalarem permanentemente em Lisboa, no Campo das Amoreiras. Arrendaram um terreno que transformariam num cinema e numa barraca nas traseiras, onde passaram a viver.

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Para além do Cine-Estrela, José e Josefa arrendaram também um outro espaço: o Cine Texas, no Bairro das Galinheiras, que funcionava num barracão de zinco.

O Cine Texas. Foto: Registro Municipal de Lisboa

Miguel é do tempo desses dois cinemas.

Nessa profundidade, o Bairro das Galinheiras, a Charneca do Lumiar, a Ameixoeira eram zonas onde se instalava a população vinda de meios rurais. “Era para ali que imigrava a gente da povoado”, diz Miguel, que vivia a saltar entre a barraca dos tios, nas traseiras do Cine-Estrela, e a barraca dos seus pais.

Durante o Festival, Raquel Belchior conseguiu falar com Miguel, que foi uma pessoa fundamental para o trabalho desenvolvido no Cine-Estrela. “O Miguel falou-nos dos donos do cinema de uma forma muito afetiva, deu-nos esta categoria da afetividade, da moradia, da família. É uma história surreal: o macaco na cabine de projeção, as memórias das pessoas…”

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Desses tempos, Miguel lembra-se muito dos “gelados e dos bolos” que comia no cinema, e dos animais de estimação: não era só o macaco Chico, também era o papagaio Jacó e, mais tarde, dois saguins. Mas, supra de tudo, lembra-se da tia Josefa, e da sua postura de estrela de cinema. “Era uma mulher muito formosa”, recorda.

Ainda que não seja o único com memórias para racontar.

Os antigos bilhetes do Cine-Estrela. Foto: Líbia Florentino

“O meu tio vendia pipocas no Cine-Estrela, foi lá que eu vi os primeiros filmes do Charlot!”, recorda Teresa, uma senhora que espera pelo autocarro na paragem do Campo das Amoreiras.

E, na página de Facebook “Lisboa Antiga”, descobrimos vários fregueses que deixaram comentários sentidos à publicação de uma retrato antiga do Cine-Estrela:

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“Porquê em miúdos éramos tão felizes e não sabíamos. Estas novas gerações nunca o saberão.”

“Muitas saudades. Foi neste cinema que vi o meu primeiro filme, tinha eu 12 anos.”

Durante o tempo que passou na freguesia de Santa Clara, Raquel Belchior procurou exatamente oriente tipo de memórias através de conversas com locais. Memórias que incorporou no espetáculo “A Firmamento Simples” no Cine-Estrela, integrado no festival e protagonizado pela atriz Ana Lúcia Palminha. E que resultou também numa curta-metragem.

O espetáculo refletia a valimento do cinema para a população.

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“Estes espaços tinham um peso muito grande nestes polos urbanos, que acabavam por estar na periferia, mas vivia imensa gente ali”, diz Raquel.

As memórias de quem por ali passou confundem-se, uma particularidade que Raquel também não ignorou. “Havia uma senhora que dizia que tinha visto muitos filmes indianos, de Bollywood, já outra dizia: ‘nem pensar, nunca vi lá um filme indiano’!”. A desfiar memórias, o fascínio dos locais pelos grandes heróis de cinemas também se fez sentir, e há quem recorde, em gaiato, vir para o Campo das Amoreiras reproduzir as cenas de luta dos filmes do Bruce Lee.

Mas, para muitos que frequentaram oriente piolho, o importante não era o filme: era o espaço de convívio, de encontro. “Os miúdos lembram-se do bolo podre que se comia no bar”, conta Raquel. “Ir ao Estrela era uma oportunidade para beberem o refrigerante que não podiam ingerir à semana.” 

A relação que os fregueses criaram com o Cine-Estrela vai para lá da tela, dos bolos, desse espaço físico. Raquel recorda com emoção o dia em que finalmente conseguiu falar com um senhor, muito reservado, que se comoveu ao falar do vetusto cinema. “O senhor emocionou-se porque as memórias que tinha do pai era de ele o levar ao cinema. Era o único momento de lazer que tinha com ele.”

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Com a passagem do Festival TODOS pelo Cine-Estrela, houve um jovem morador das proximidades que conheceu pela primeira vez o interno daquele prédio deixado ao desarrimo. Um jovem artista, espargido uma vez que “Traumatismo 21”, que, ao ver o cinema por dentro, propôs-se a cobri-lo de arte, de grafittis.

“Eu sempre ouvi os mais velhos a falarem dos filmes do Bruce Lee, e de saírem daqui à pancada”, recorda Traumatismo.

A Igreja acedeu ao pedido.

Traumatismo 21, que cresceu no Bairro de Angola, e do qual nome artístico remete para esse mesmo bairro (21 corresponde às duas primeiras letras do abecedário, BA, já Traumatismo é uma vocábulo que se escreve da mesma forma em várias línguas), procura dar um pouco de vida a um espaço onde já quase zero resta.

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Ele, que descobriu o imagem ainda em miúdo, deixou marcadas paredes com os seus grafittis, que remetem para um universo de “caveiras, cartoons, cannabis“.

O cinema fechou no final da dez de 70. “Quando apareceram as cassetes, muitos cinemas fecharam”, lamenta Miguel Simões. As cassetes, a televisão, o prolongamento da cidade… tudo isso matou lentamente estas antigas salas de cinema que serviam estes bairros.

Um drama que todos conhecem do filme “Cinema Paraíso”, sobre uma antiga sala de cinema num bairro italiano que acaba por fechar com a chegada de novas formas de consumir entretenimento.

Depois do fecho do Cine-Estrela, José e Josefa continuaram a feirar – profissão que Miguel herdou dos tios e dos pais – e a viver nas traseiras do vetusto cinema. Com a morte deles, o Cine-Estrela, que pertencia a uma outra família, seria logo doado em finais dos anos 90 à Igreja Filadélfia.

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Mas, desde logo, permanece desprezado.

Num vídeo sobre o processo de construção do espetáculo “A Firmamento Simples”, Raquel Belchior desabafa:

“Os sítios, independentemente daquilo que são, precisam de ser vividos. Mas também não se pode ocupar um espaço, apagando aquilo que foi.”


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Inauguração Pendular a sua moradia. Em Lisboa, descobriu o paixão às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Novidade de Lisboa.

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ana.cunha@amensagem.pt


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