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A diplomacia portuguesa das últimas décadas tem tido como um de seus desideratos a plantação de líderes nacionais em lugares de destaque nas grandes organizações internacionais. Um dos melhores exemplos foi o empenho na candidatura de António Guterres a secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que passou por um processo de “beija-mão” do Governo português de António Costa aos líderes chineses, enquanto estes faziam escalas nos Açores a farejar os ativos do arquipélago. Portugal, ainda combalido pela crise financeira internacional, agradeceu o apoio da China e ofereceu ao mundo um dos seus.
Desta forma, Guterres subiu ao topo da hierarquia da mais relevante organização política internacional, para o lugar que lembrou ser “o mais difícil do mundo”. Seguiu com o seu potencial de inteligência, capacidade de mediação e sensibilidade humana, quase clerical, bem aceite numa grande franja da opinião pública internacional.
A verdade é que Guterres tem tanto de inteligência quanto de fraqueza, é permeável e manipulável, presa fácil em um terreno minado por jogos políticos e interesses. Falta ao líder português a força do arregaço, a assertividade dura capaz de resistir às pressões. Nota-se um desequilíbrio nos discursos para diferentes geografias, recorre à argumentação do vácuo de um só sentido, facilita a luta de uns contra os outros. Ao seu lado, homens invisíveis guiam seus passos, vindos das piores ditaduras do planeta que apoiaram sua candidatura.
A ONU está inclinada para o sul, onde a vitimização dos mais desfavorecidos ajuda a encobrir as maiores das atrocidades. É por isso que a China, a segunda maior economia do planeta, quer continuar sendo tratada como uma nação em desenvolvimento. Ele se aproveita da ideia mal construída de que os pobres sempre têm razão. Este é o único país do mundo que assume liderança em mais de uma agência da ONU. A Organização para Alimentação e Agricultura (FAO), por exemplo, é liderada por Qu Dongyu, e Assuntos Econômicos e Sociais têm Liu Zhenmin como vice-presidente. Homens ali colocados, não para servir a interesses internacionais, mas para seguir fins patrióticos, como obriga o protocolo interno do Partido Comunista Chinês (PCC). Eles escolhem o apoio a ser dado pela ONU a certas áreas geográficas onde a China tem interesses de penetração e influência, particularmente no continente africano. Aproveitam para vedar o acesso de ONGs à organização, por serem incômodas para o país.
Wu Hongbo, que foi subsecretário-geral da ONU para Assuntos Econômicos e Sociais, entre 2012 e 2017, admitiu ter usado sua posição para vedar o líder do Congresso Internacional Uigure, Dolkun Isa, a possibilidade de participar de iniciativas conjuntas. O mesmo podemos dizer em relação à participação de nacionais de Taiwan, tibetanos ou mongóis em atividades internacionais. Guterres anui, faz que não vê. Michelle Bachelet, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, entre 2018 e 2022, viu-se e desejou-se para evitar as pressões chinesas que lhe queriam travar as investigações à repressão uigure. Na última hora, antes de deixar o cargo, publica o relatório onde aponta as graves “violações dos direitos humanos” cometidos contra aquela minoria e “outras comunidades predominantemente muçulmanas” na província chinesa de Xinjiang.
A ONU serve de canal preferencial para Pequim propagar o seu projeto nacional, internacionalizando e legitimando a sua ação sobre os países mais vulneráveis na defesa dos seus interesses. Não menos impactante é a participação da China na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDHNU), sendo um dos países que sistematicamente violam a liberdade de imprensa e vedando o direito à informação na China continental e, particularmente, em Hong Kong.
Cédric Alviani, diretor do Repórteres Sem Fronteiras (RSF) na Ásia Oriental, diz que integrar essa comissão oferece ao Governo chinês, “um dos maiores predadores da liberdade de imprensa e dos direitos humanos” do planeta uma plataforma extraordinária para continuar a “subverter normas internacionais”. É isso que a organização liderada pelo dirigente português está permitindo.
Guterres evita falar do problema, prefere os temas da Palestina ou dos refugiados no Mediterrâneo, mais cómodos, bem acolhidos pelos grupos de direitos civis e do islamo-esquerdismo europeu. Por isso, fala rude para as democracias liberais, com suavidade para as ditaduras. Aparece em Pequim ao lado do discreto Liu Zhenmin a promover a Nova Rota da Seda, um projeto megalómano de natureza político-económica que, na essência, serve os propósitos individuais do gigante asiático, não necessariamente do mundo.
Há em Portugal uma certa condescendência em relação a Guterres pelo fato de ser português, mas o trabalho que está desenvolvendo tem um lado profundamente negativo. A ONU, a organização que lidera, já assimilou em seus documentos oficiais a linguagem da retórica propagandística chinesa, por exemplo a expressão “ganha-ganha”, usada para aliciar os líderes africanos para a cedência de recursos. A China e a Rússia não escondem vontade de reformar o sistema de governação global. Xi Jinping promove retoricamente a sua “diplomacia com características chinesas” que implica a criação de uma “comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade”. Por outras palavras, pretende que o funcionamento do sistema internacional deixe de estar centrado em Washington para passar a estar centrado em Pequim. E Guterres sujeita-se a este papel, não de reformar a ordem, mas de a substituir. Arrisca-se a ficar na história como o secretário-geral da ONU que cavou um fosso na arquitetura internacional, abrindo espaço para um conflito planetário com dois sistemas, um no Norte e outro no Sul.
A recente cúpula do BRICS, em Kazan, na Rússia, nos deu mais um momento lamentável de um secretário-geral da ONU aprisionado pela China e pela Rússia. Ele aparece diante das câmeras, sorrindo, cumprimentando Vladimir Putin com reverência. Sem que desvalorizemos o papel da diplomacia, o episódio serve, sobretudo, a propósitos da propaganda russa na tentativa de mostrar ao resto do mundo que ele está certo; mostra nas televisões que os BRICS, particularmente a China, e até a ONU estão do seu lado. Ao que parece, o Ocidente está perdendo e Putin está feliz com isso. Não estranhe se um dia Guterres, depois de deixar a ONU, puder se tornar um assessor especial de Xi Jinping. Tal como Henry Kissinger, “um amigo da China”, daqueles que ajudam o mundo a ver aquilo que eles querem que se veja.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
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