Março 31, 2025
Quotidiano de Caminho (6): Fazermo-nos terreno

Quotidiano de Caminho (6): Fazermo-nos terreno

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Caminho de Santiago, Cláudio Louro

Caminho de Santiago, Cláudio LouroCaminho de Santiago, Cláudio Louro Registo do quotidiano à hora de almoço – o típico caldo dos humildes da região. Foto © Cláudio Lobo

Acordei. Levante é o último albergue antes de chegar a Santiago. Recordei o dia de ontem e o desgaste que tenho sentido, com algumas coisas antigas a virem ao de cima. No quotidiano escrevi esta breve reza: “Hoje peço-Te, Pai, que me ensines a arte do desprendimento, das mãos vazias. Ensina-me a ser pobre de espírito, a albergar tudo o que vem, mesmo o que é perturbador. Tudo faz segmento do Caminho.”

Para mim, concordar a “cruz” sempre foi sinônimo de peso (só de imaginar…). Mas hoje temos uma novidade perspectiva… É que não levaremos a cruz, ou seja, se recusarmos concordar a nossa vulnerabilidade, o peso será muito maior. Portanto, levar a cruz pode fazer de nós pessoas livres, não fosse seu caminho para a Páscoa. Portanto… temor de quê? (Pensei eu)… É tudo Caminho de incremento, mesmo as dores antigas.

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Levantei-me. Despedi-me do simpatiquíssimo rapaz do hostel, que no termo do dia de ontem me ajudou bastante. Quando tomava o pequeno-almoço, estava a dar na TV espanhola o Tem talento. E eis que aparece alguém do qual talento é fazer arte com as suas sombras… Com tudo isto que andava cá por dentro, senti Deus a piscar-me o olho: sim, é verosímil fazermos arte com as nossas próprias sombras!

Comecei a caminhar. O sol despontou, iluminando uma paisagem cada vez mais campestre, por entre algumas aldeias de pedra escura. Ontem, ao chegar ao albergue, escutara uma peregrina espanhola a reclamar-se das pessoas que exclusivamente caminham, sem parar: «O Caminho é para parar e usufruir! Ver a formosura de uma flor!», dizia. Inspirado também pelas suas palavras, parei e descansei, observando o que me rodeava, principalmente o “pequeno”. Cheguei a um lugar onde confluíam dois riachos. Senti-me debaixo das árvores e começou a chover! Uma vez que fazem as reflexões Passo a Rezar foram-me nutrindo. Um grande grupo de peregrinos passou por mim. Acho que foi a primeira vez que vimos tantos peregrinos juntos.

Vários quilómetros depois à Igreja da Escravitude. Senti-me para rezar, quando de repente sinto uma mão no meu ombro. Um peregrino veio ter comigo e quis dar-me força, com o seu olhar e o seu sorriso. Estes são aqueles instantes que guardarei no tesouro do Caminho. O que a coragem de um gesto tão simples pode fazer… Lembre-me de repentino da mensagem muito formosa que recebe de uma amiga.. Dizia: “No teu último trajectória, quando o cansaço se apoderar de ti, irá com certeza comparecer um peregrino que você traga o meu amplexo.”

Apercebi-me de que eu teria missa. A homilia foi muito interessante. O duelo, neste tempo de metanoia, é sermos terreno, lodo. Húmus, de onde deriva a termo “humildade”. Estas palavras foram ecoando. Já ontem tinha lidado com um lodo, mas é difícil tocá-la por dentro. Levei isso comigo, no libido de me tornar mais húmus, sem tanto recebimento de tocar na fragilidade, ou melhor, nas “cinzas” que fazem segmento de nós.

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A tarde foi pontuada por momentos muito consoladores. O deitar-me na relva e ver o firmamento azul, ou o dançar e trovar à chuva (não resistir!). Sim, as oscilações dos estados do tempo eram constantes, a par da meteorologia interna.

Passei por um pardieiro de pedra e madeira. Parecia abandonada. Lembrou-me do promanação de Jesus. Pus-me a pensar que tantas e tantas vezes dou por mim enredado em várias idealizações e expectativas (a expectativa de chegada, a idealização do caminho…) que perco esse contato com o “húmus”. O Fruto de Deus nasceu no lugar menos idílico e menos encantador que poderia nascer. Há que me fazer mais terreno.

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A chegada às portas de Santiago foi muito exigente. Parece que os quilómetros simplesmente não passam. Exigi, uma vez que uma amiga me dissera hoje, a superação do triplo desgaste que senti: físico, psicológico e místico. Para conseguir atravessá-lo, e cantando para o bom Pastor. Tentei olhar para esses momentos uma vez que as reais oportunidades para fortalecer e ginasticar a fé.

Depois de ter entrado noutra igreja e ter participado na missa, saí e já tinha derrubado a noite. Apercebi-me que já estava em Santiago pelo pavimento de pedra escura que entretanto apareceu. Senti-me uma vez que num filme: de cajado um pouco cambaleante e a terçar a rua chuvosa que dava chegada à catedral. Ao vê-la, ainda há muito tempo, houve um tanto que mexeu cá por dentro. Uma mistura de emoções difíceis de definição e gratidão por chegar, depois de toda esta proeza. Trilhei o caminho de pedra que conflui com os outros caminhos, oriundos dos vários pontos cardeais.

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Ao chegar à famosa valva, no núcleo da Rossio, olhei para a Catedral. Agradeci. Quis ver por onde poderia entrar, mas deparei-me com placas nas escadas a manifestar “não passar”. Disseram-me que durante a missa do peregrino as portas fecham-se e só voltam a terebrar mais tarde…

Confesso que isso me entristeceu. Lembre-me novamente do mistério do promanação de Cristo, em que, naquele momento de chegada a Belém, não havia lugar. Parece que leste incidente me acompanhou, hoje, ajudando-me a ter as mãos mais desapegadas de expectativas. Porém, senti também que por mais visitas ou peregrinos que pudessem possuir, é sempre bom chegar e as portas estarem abertas para nos sentirmos acolhidos (sobretudo, em dias de chuva uma vez que aqueles). Lembrei-me da conversa que tive dias detrás, em que me disseram que muitos peregrinos procuram ir até Finisterra para fechar o Caminho, de modo a sentirem-se acolhidos por esse amplexo do oceano. Não fui até Finisterra, mas fui dentro, a esse templo sempre disponível, onde Deus habita em espírito e verdade.

Cheguei ao hostel The Last Stamp e quando ia preparar os registos do quotidiano… deparei-me com o telemóvel a pecar, por justificação da chuva que apanhara… Tentei que sobrevivesse mas… desligado. Fiquei sem tela. Pedira eu, ao início do dia, a arte do desprendimento… Eis uma oportunidade.

Cláudio Louro é animador pastoral e professor de Instrução Moral e Religiosa Católica; nas horas livres volta ao universo da música e do teatro músico com os amigos e considera-se atualmente em estado de caminho.

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Os textos anteriores deste Quotidiano podem ser lidos cá.

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