1.
Querido António Lobo Antunes
Sei que está atrapalhado.
E se te escrevo não é por te saber em plebeu, mas pela impossibilidade de fazeres o que tens de fazer, de seguir todas as manhãs para o lugar da tua escrita, um lugar de fantasmas bons e maus, o lugar das sombras de uma guerra que viveste e que nunca te abandonou, dos teus personagens, das memórias que trazes, da decadência e dos falhasdos a quem deste uma vida em cada um dos teus livros.
2.
Sei que te custa furar a porta da rua em direção à tua liberdade.
Sempre viveste completamente sozinho estando quase sempre escoltado.
Com as filhas de que depende afetivamente, com a mulher que patroa e que te tem escoltado nestes últimos vinte anos, com os amigos que partiram ou que ainda estão, o Daniel Sampaio sempre tão presente e sempre tão preocupado contigo, tantos outros, o teu editor, nossos leitores cá e fora daqui.
Mas sozinho, comparado em diálogos imaginados, em gente que não existe para nós, mas existe para ti, livros por ortografar, murmúrios soprados por um Deus em que não acreditas, folhas em branco que sentes nunca mais serão tocadas pelo pelo teu lápis impecavelmente refinado .
Absolutamente sozinho, mas escoltado pelo mundo que criaste. E pela espera dos que te idolatram ou dos que te detestam – os primeiros a esperar pelo próximo lançamento, pelo próximo minuto em que você encontrará numa qualquer feira do livro, os segundos a babarem-se para que falhes, para que caias, para que desapareças.
3.
Querido António Lobo Antunes
Um dia disseste-me que era inseguro.
Que não poderia continuar a ortografar com a preocupação de ser estremecido, com a preocupação que me achassem bom, supimpa ou uma merda.
De tanto te glorificar porquê jornalista, esqueci-me que era psiquiatra.
E sempre que estive contigo, senti-me sempre no cabrão da divã. Sem saber o que manifestar, com vergonha de estar ali, com terror de furar a boca e sairrem palavras ao lado, ridículas e pequeninas.
Pequeninas quando comparadas com as tuas.
Enorme António.
Ao contrário de nós, da maioria de nós, imortal.
Mesmo que você esteja atrapalhado.
Mesmo que seja penoso teres de permanecer em mansão sem poder fugir para o teu lugar, o único em que te sentes menos sozinho, menos desamparado.
O lugar da escrita onde talvez não possa retornar.
O lugar onde, ainda assim, todos esperamos que voltes.
Demoremos o tempo que demoramos.
Texto e programa de Luís Osório
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