No final de um ano que já registrou as perdas de João Donato e Lenny Andrade, ambos em julho, morreu na madrugada de sábado mais um nome ligado aos alvores da bossa novidade: o cantor, violonista e compositor Carlos Lyra. Tinha 90 anos e foi internado com febre na quinta-feira, num hospital da Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro. A pretexto da morte não foi anunciada, admitindo-se que possa ter sido infectada por uma bactéria.
Nascido no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo, em 11 de maio de 1933, Carlos Eduardo Lyra Barbosa cresceu numa família em que a música já estava presente há gerações, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira (Arte Editora, 1977). Estudou num escola de jesuítas e aprendeu a tocar violão na juventude, depois de tirar os primeiros filhos, na puerícia, de um piano de brinquedo, passando depois a testar a harmônica. Foi a música que o levou a deixar os estudos de arquitetura quando, junto com Roberto Menescal, abriu uma liceu de violão no Rio, onde ambos davam aulas e por onde passariam futuros músicos e cantores uma vez que Marcos Valle, Nara Leão, Edu Lobo ou Wanda Sá.
A primeira música que escrevi foi Quando chegar (em 1954), seguindo-se Moça, que Geraldo Vandré (que se apresentou uma vez que Carlos Dias) defendeu num festival em 1955 e que Sylvinha Telles viria a gravar em 1956, num disco teve uma vez que um dos precursores da bossa novidade, movimento onde pontificaram Tom Jobim. Vinicius de Moraes e João Gilberto e no qual Lyra viria a envolver-se, com os discos Bossa novidade (1959) e Carlos Lyra (1961). No mesmo ano do seu primeiro LP, teve três canções suas (Maria ninguém, Lobo histrião e Saudade fez um samba) gravadas por João Gilberto no álbum Chega de Saudade (1959).
Mas a sua participação no Festival Bossa Novidade realizado em Novidade Iorque, no Carnegie Hall, no dia 21 de Novembro de 1962 (junto com João Gilberto, Roberto Menescal, Luiz Bonfá, Agostinho dos Santos, Globo Sete, Sérgio Mendes, Sérgio Ricardo e outros ) levou-o depois a evitar-se do movimento, dada a forma um tanto atrapalhada uma vez que, no seu entendimento, tal concerto decorreu. “Ficou até hoje a nossa vergonha, o dia do Carnegie Hall”, disse Lyra ao musicólogo Zuza Varão de Mello, no livro Eis Cá a Bossa Novidade (WMF, 2008).
E passou a declarar que sua música não era bossa novidade mas sambalanço. O seu terceiro LP, Depois do Carnavaljá foi legendado “o sambalanço de Carlos Lyra” (1963) e incluía canções uma vez que Influência do jazz, Se é tarde me perdoe ou Marcha de Quarta-Feira de Cinzas, sendo esta uma das suas parcerias com Vinicius de Moraes. E foi com ele que se envolveu em 1965 na filarmónica sonora do músico Pobre Moça Ricapara o que escreveu Maria Moitaque, gravado em disco, em 1964, com a voz de Thelma Soares, veria o seu palavreado inicial praticamente decalcado no riff de Fumo na chuvados Deep Purple.
Um dos álbuns de Carlos Lyra, Carioca de Grilhãode 1994, inclui um dueto com a cantora portuguesa Eugénia Melo e Castro, um dos muitos que ela gravou com artistas brasileiros, na fita Amarga vinha, com produção de Roberto Menescal. Essa melodia viria a ser incluída numa compilação de Eugénia lançada no ano 2000 e intitulada A Luz do Meu Caminho.
A instauração da ditadura militar no Brasil, em 1964, levou-o a partir dos Estados Unidos, onde trabalhou com Stan Getz, até tornar ao Brasil em 1971, onde voltou a agir e a gravar. Em 1979, regeu um coro de cinco milénio vozes no Congresso da União Vernáculo dos Estudantes (UNE), em Salvador da Bahia, que entoaram o Hino da UNE, que Lyra havia formado com Vinicius de Moraes. Carlos Lyra tinha sido, em 1961, um dos fundadores do Meio Popular da Cultura da UNE, junto com Ferreira Gullar, Leon Hirzman e outros.
Branco de homenagens e celebrações já nos anos 2000, Carlos Lyra gravou em 2019 o álbum Além da Bossa, uma obra derradeira-primeira a juntar-se à sua discografia. Na retrato da capote, tinha um charuto nas mãos, e na da contracapa, um microfone, resumo do que teve sido a sua vida, entre a música e outros prazeres. Sem tema A bossa novidade é fodaé ele que se refere a Caetano Veloso (no álbum Abraçaço, de 2012), quando diz: “O magno instrumento heleno velho.” Esse “magno” é Carlos e o “instrumento heleno velho” é uma lira. Carlos Lira.
Ao ser noticiado a sua morte, não tardaram as reações de amigos e músicos nas redes sociais. Gilberto Gil enalteceu “o legado inopinado” que Lyra nos deixou aos 90 anos, enquanto a cantora Wanda Sá tornou público o seu gratulação a Lyra “pela música, pelos acordes, pela bossa novidade e pela nossa amizade de 60 anos”. E Toquinho, cantor, compositor e parceiro músico de Vinicius de Moraes nos últimos anos da vida do poeta, elogiou Carlos Lyra, classificando-o uma vez que “o melhor melodista da música brasileira”.