
Olá (e uma despedida), vizinho/a
Uma vez que esses preparativos para o Natal estão? Por cá, já fizemos um encontro de equipe para comemorar a data. Não que o trabalho pare: temos de continuar a explorar esta cidade, para lhe trazer histórias uma vez que a de Giovanni, o vizinho homenageado no Intendente no pretérito domingo – já leu?
O Natal é pretexto para balanços. E hoje sou eu, Tomás Delfim, quem os faz. Para proferir “olá”, mas também “até já”.
Ao contrário dos meus colegas, não vou voltar à redação no ano que se avizinha. Acredite quando lhe digo que escrevo de coração apertado e de olhos com lágrimas enquanto revive os momentos que passei na Mensagem nestes meses que integrei a equipe uma vez que estagiário. Em breve, vou estar num novo duelo, num outro grupo de informação social – vou para o Expresso.
E, para a despedida, deram-me o prazer de lhe endereçar esta pequena missiva.
Caso tenha escoltado os meus artigos, deve estar a par da crónica que escrevi em setembro: “Um blind date com Lisboa: uma vez que voltei a caminhar na rua sem a ajuda de uma bengala“. Se ela passou despercebida, eu explícito: sou cego.

Depois esta enunciação, é generalidade interrogações começarem a formar-se nas cabeças de quem a ouve ou lê. Interrogações que, certamente, despontaram também nas mentes dos meus portanto futuros colegas, logo que cheguei à redação da Mensagem pela primeira vez, para uma entrevista de estágio. Logo nesse dia, fui para lar de coração referto: não só porque tinha conseguido permanecer com o estágio, mas porque saí com um ótimo pressentimento sobre os tempos que viriam.
Mas vamos ao início da história.
Ceguei por completo por volta dos sete anos, por desculpa de uma doença. Não acabou com a minha vida, mas deixei de ver o mundo quando ele ainda era belo, puro e puro. Tenho muito impresso na memória a sensação de reforço e conforto transmitido pela brancura da neve, por exemplo, e o paixão infantil que sentiu através de tudo o que via. Os rostos dos meus pais ficaram para mim eternizados com a idade da profundeza. E lembro-me muito da sensação de alcance impressionante dos meus olhos, quando via, lá do supino do avião em que segue, a minha lar cá em reles.
Por essas razões, guardo boas gravações de quando usava a visão para me guiar. Hoje, já não sinto falta.
Troquei a visão por estímulos sobretudo táteis, auditivos e olfativos. A sensação ligeiro do braile nos meus dedos, que a minha mãe me ensinou a interpretar com uma caixa de ovos. Os cheiros que comecei a associar às pessoas que senhoril. O som das vozes, que substituiu as caras quando eu preciso enobrecer alguém. O valor necessário de um contato físico afetuoso. Às vezes, seria bom se todos fechássemos os olhos e somente sentíssemos. Sentir a mão de alguém que passoua connosco.
Há umas semanas, lancei um duelo a duas das minhas colegas com quem passava na Baixa. À nossa editora, Catarina Reis, e à Ana Narciso, jornalista da Mensagem. Propus: “Fechem os olhos e deixem-me guiar-vos”. Foi um teste bonito. Trocámos de pele por momentos. Privaram-se da visão, o principal meio de orientação delas. E não é fácil, para quem vê, dar totalidade permissão aos outros sentidos, que muitas vezes ficam entorpecidos pelos nossos olhos. Mas é verosímil. Tem que ser verosímil.

Comecei a prática de orientação e mobilidade na rua ainda na escola básica. Embora escoltado por uma professora, serviu para me preparar para quase tudo o que viria a encontrar nas ruas de Lisboa durante o dia a dia.
Quase tudo.
Com exceção dos imprevistos de um dia normal, uma vez que os anúncios das paragens nos comboios, metrôs e ônibus que desligaram vão, o que nos obriga a estar 100 vezes mais atentos. Também poderia falar da bulha sinalética no pavimento das plataformas de algumas estações de metro/comboio. Os semáforos que não apitam. Ou o duelo de caminhar à chuva com uma bengala na lajedo portuguesa. O traje de se associar a deficiência a alguém que necessita obrigatoriamente de ajuda, física ou monetária – sim, já me ofereceram moedas. Ou mesmo uma vez que abordagens pouco delicadas em relação a mim.
Tudo isto daria para grafar um livro de pequenos contos: o quotidiano de um cego nas ruas de Lisboa.
Uma dica de ouro para o dia em que se cruzarem com um cego na rua: em vez de agarrá-lo pelo braço/antebraço/mão e levá-lo seja para onde for, só porque acha que o sítio para onde vão é o mesmo , basta fazerem uma abordagem uma vez que fariam com qualquer outra pessoa. “Bom Dia. Precisa de alguma ajuda?” E, sim: por incrível que pareça, esta abordagem é rara.
Cinco meses na Mensagem deu para deixar algumas destas dicas do lado dos meus colegas. Foi uma aprendizagem mútua, no meu primeiro trabalho uma vez que jornalista – um tanto que pensei nunca vir a ter, tantas foram as candidaturas que invejei (para somente receber nascente “sim” da Mensagem). Levo as primeiras saídas à rua em trabalho, as minhas primeiras entrevistas, os meus primeiros erros. Tudo isso é sempre escoltado da inquietação que é o traje de eu estar cego. Uma vez que é que o entrevistado vai reagir quando eu vir? Uma vez que é que vou chegar até aquele sítio, sendo que nunca lá fui?
Tive sempre resposta – e pedestal – para responder a estas perguntas.

No final deste mês, deixo de fazer secção desta equipe, mas vou sempre levar comigo tudo o que aprendi com estes jornalistas incríveis que todos têm vindo a saber, nestas newsletters e nas reportagens que vão publicando. Espero também ter deixado um pouco de mim neste capítulo da Mensagem de Lisboa. E secção com a sensação de que os nossos caminhos se tornarão a cruzar – o meu com os dos meus colegas e também com o seu, querido vizinho/a.
Foi um prazer contar-lhe esta cidade.
Feliz Natal. E até já.
– Tomás Delfimjornalista da Mensagem de Lisboa
Se ainda não leu:








O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz uma comunidade,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer secção desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua tributo: