Não planejar os dias é a vitória suprema da liberdade sobre o sufoco do compromisso. É conseguir que o zero que esteja guardado seja muito mais do que o dia pleno de certezas que quem planeja acha que vai ter.
OS NOSSOS DIAS são aquilo que fazemos deles, mas por muito que nos esforçamos, nem sempre temos mão no resultado final. Há dias que são pensados com régua e esquadro, depois eles sentam-se todos numa sala e riem-se do que nós planejamos por uma semana. Planear é uma forma de tentar ver o rumo e fazer dele o que queríamos que ele fosse, mostrar-lhe que contra nós não há espaço para brincadeiras. É divertir à adivinhação, malparar um horizonte que torcemos para que comece a lucrar forma ainda no presente.
Planeamos semanas, meses – às vezes até anos –, para sentirmos que somos dois passos adiante do que há-de vir, e que os nossos interesses vão permanecer todos a uma caber agenda. Temos tanta esperança em nós que até chegamos a esperar uma hora a cada compromisso, para que se possa saltar de responsabilidade em responsabilidade sem perder tempo. Se perguntarmos a alguém “o que é que vais fazer amanhã?”, e nos respondermos “olha, ainda não sei, deixa ver o que acontece”, vamos descobrir que essa pessoa não pode estar muito da cabeça, que há de certeza ali uma qualquer possibilidade de conta dela. Quem é que se atreve a entrar assim nos dias sem saber o que vai descobrir pela frente? Mas há uma vitória nessa resposta, que assusta os mais organizados: a de estar de espírito descerrado para o que vier, e agir em função disso. Não planejar os dias é a vitória suprema da liberdade sobre o sufoco do compromisso. É conseguir que o zero que esteja guardado seja muito mais do que o dia pleno de certezas que quem planeja acha que vai ter. Velejar à vista não é sinal de se estar perdido, é antes sintomático de quem já chegou a tantos sítios, que agora é o não saber zero que lhe dê um propósito e sota. Sabemos que os dias nos vão suceder, e queremos que eles sigam uma ordem e um rigor que nos alivie das tropeções que a vida já tem para nós. Quem preenche a agenda com deveres a seguir aos outros, não deixa uma fresta sequer para que entre uma teoria de última hora. Tenho um companheiro que sempre o convido para almoçar, ele responde: “Hoje não consigo, já sabes que isso temos que marcar com tempo.” Antes não pensei muito nesta resposta, fiquei só com pena de não ter a companhia dele. Mas agora me questiono se o que o leva a planear com tanta antecedência é a vontade de ter mão no que está por vir, se é o pavor de se ver frente a uma bolsa de tempo livre sem saber o que fazer com ela.

Juan Cavia
O prazer na rotina tem pouca popularidade, porque é dela que riem os que se dizem livres e aventureiros. Acham que fugir-lhe é lucrar pontos; mas conseguir que uma rotina meça esse título transcendente é talvez a maior das aventuras, porque é fazer com que haja alguns fundamentos de certezas no meio da floresta densa e escura que é terçar um dia de uma ponta à outra.Há na rotina uma maneira de ver as coisas que podem evadir de quem tão desesperadamente quer fugir dela. O conforto dos rituais que nos dão alegria e segurança não pode ser uma coisa má, porque nos reconforta com tantas coisas boas. Quebrar a rotina é quebrar a felicidade que se tem nela, e quando isso acontece, que seja para redobrar a felicidade por se passar esse risco. No léxico há várias definições para a termo “rotina”: fazer um caminho já trilhado ou sabido, hábito de fazer uma coisa sempre da mesma maneira, e por aí fora. Mas lá no meio aparece uma frase que me parece desajustada à termo: “aversão às inovações”. Nunca pensei nisso, quando pensei em rotina. A rotina é enxurrada de pequenas inovações diárias, que vão fazer com que ela própria se espante. A rotina de cozinhar e tratar as crianças, por exemplo, é tudo menos avessa às inovações. É pleno de coisas novas que fazem com que tudo seja uma invenção regular. Quer se planejar, quer não, os dias hão-de seguir indiferentemente a nós. O que ainda não aconteceu pode ser tanta coisa, que às vezes não querer saber talvez seja o que nos liberta do fracasso. Entrar numa manhã exclusivamente com a expectativa de que até à noite tenha valido a pena o risco do incógnito.Não sei quem fica a lucrar, se os que seguem a rotina, ou os que se livram dela para saltar de peito descerrado para o dia que vem; só sei que tenho muita inveja de uns e de outros.Muitas das melhores coisas que me aconteceram não foram antecipadas por mim. Estilhaços de alegria onde não contava com ela. Fiquei a lucrar a duplicar: por acontecerem, e por não saber que iam suceder. Oxalá informou que o risco valeria sempre a pena, e nem pensou duas vezes. Assim, resta-me remoer qual é o risco maior: se o da rotina, se o da falta dela.
Texto escrito segundo o consonância ortográfico anterior
Mais crónicas do responsável
Não planejar os dias é a vitória suprema da liberdade sobre o sufoco do compromisso. É conseguir que o zero que esteja guardado seja muito mais do que o dia pleno de certezas que quem planeja acha que vai ter.
O mal vende mais do que o muito, num mundo em que o muito não tem espaço para se fazer valer; entre a ruína e a construção, damos mais atenção à primeira. Fomos nós que quisemos assim, é o nosso pavor de convencer-nos que ser testemunha do mal talvez chegue para ajudar.
Estamos sempre a ser traídos pelos fragmentos que nos faltam do pretérito, e vamos acrescentando lembretes até conseguirmos que aquele conjunto de imagens e sons que gravaram na cabeça, sejam finalmente uma memória nossa. Mas chegou a esse sítio, já não é uma memória, é o que resta dela.
Cada vez que se fala mais de saúde mental, mas é provável que nunca tenha sorte tanto desrespeito pelo tema. Não é tendência no Instagram ou no Tik Tok que, alguém sem formação para isso, se arrisque a expor uma vez que operar uma cabeça que esteja partida por fora. Mas espanta-me as muitas que arriscaram passar o transe de expor uma vez que acham que se trata de uma cabeça partida por dentro.
Os sítios fora de era são mais bonitos, conhecem os segredos acabados de deslindar. Já vimos de muitas maneiras, mas o que não sabíamos é que havia esta novidade forma de os contemplar; Guardados quase só para nós estão, uma vez que se nos tivessem sido prometidos por uma força maior que tudo.
Mostrar mais crónicas