Novembro 17, 2024
Do “Portugal Velho” ao “Portugal Novo”: um dicionário dos 200 anos da Revolução Liberal Portuguesa de 1820 | Série Ciências Sociais em Público (XXXVIII) – Opinião

Do “Portugal Velho” ao “Portugal Novo”: um dicionário dos 200 anos da Revolução Liberal Portuguesa de 1820 | Série Ciências Sociais em Público (XXXVIII) – Opinião

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No dia 24 de agosto serão divulgados 200 anos sobre o levantamento militar no Portoque daria origem ao que, depois, ficou conhecido por “Revolução Liberal Portuguesa”. Em meados do século XIX, o historiador Alexandre Herculano ultimamente-a maior mudança política e social em Portugal desde a Idade Média. No século XX, a historiografia marxista tendeu a subestimar o impacto dos governos liberais e a amplificar todo o tipo de continuidades entre o Antigo Regime do século XVIII e o novo Estado Liberal do século XIX.

Nos últimos 40 anos, porém, a intensificação da investigação histórica, quer sobre o liberalismo oitocentista, quer sobre o Antigo Regime, ajudou a reconsiderar a Revolução de 1820 e restauraram, até certo ponto, a ideia de Herculano de que se tratou de uma enorme transformação social e política e de uma profunda ruptura com o que tinha sido o passado português. É essa grande mudança histórica que pretende abarcar o projeto do Dicionário Crítico da Revolução Liberal Portuguesa (1820-1834).

Uma transformação social e política

O que aqui designamos como Revolução Liberal não é simplesmente um acontecimento — por exemplo, o pronunciamento militar de 24 de Agosto —, mas um processo, encetado por essa iniciativa das Forças Armadas e depois continuado por várias décadas ao longo do século XIX. A Revolução de 1820 culminou na consolidação de um regime, a monarquia constitucional, cujos líderes passaram a chamar a si próprios “liberais”, e que efectivamente transformaram, através de legislação, as instituições e os princípios da vida portuguesa. Não só mudou o conceito de Estado e a própria relação dos portugueses com o Estado, mas também alterou o estatuto da nobreza, do clero e de todos os corpos intermediários, como os municípios e as corporações.


“A faustissima e memorável Reunião dos Ilustríssimos Membros da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino e Regência Interina de Lisboa” (1 de Outubro de 1820), António Cândido Furtado
Colecção do Museu de Lisboa/Câmara Municipal de Lisboa – EGEAC

Embora tenham mantido alguns dos andaimes do Antigo Regime, como uma Igreja oficial, uma nobreza titular ou uma prática de escravatura no espaço do império, o facto é que os liberais revolucionaram a sociedade portuguesa num sentido profundo e radical. Afirmaram um ideal cívico quase republicano do Estado como uma comunidade de cidadãos livres e iguais, embora o conceito de cidadania fosse ainda restrito a uma elite de homens: as mulheres, os mais pobres, os analfabetos e as pessoas escravizadas não faziam parte desta comunidade. E erradicaram legalmente o Antigo Regime de ordens sociais e instituições tradicionais.

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Tratou-se de um processo prolongado no tempo e caracterizado por uma agreste divisão política e por momentos de enorme violência — como sucessivos golpes de Estado com participação do Exército (em 1820, 1823, 1824 e 1828) e erupções recorrentes de guerra civil (em 1822-1823, 1826-1828, 1832-1834) — resultando mesmo em intervenções estrangeiras, como em 1826-1827, ou em 1834.

A Revolução Liberal desenvolveu-se também em articulação com grandes mudanças no contexto internacional e respectivas consequências na natureza e configuração do Estado português no princípio do século XIX. Seguiu-se às guerras com a França em território português (1807-1812), que levou à saída da família real, da corte e do Governo para o Rio de Janeiro em 1807, e depois esteve intimamente relacionado com a independência do Brasil em 1822 .

O que quer dizer que a Revolução Liberal foi também o processo através do qual a monarquia portuguesa, um Estado intercontinental (Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves) até aos anos 1820, se teve que se reconfigurar como um reino europeu de dimensão média, com necessidade de se adaptar a recursos fiscais e populacionais mais limitados, uma vez que os remanescentes de possessões coloniais na África e na Ásia de modo que nenhum pudesse compensar a separação do Brasil. As reformas liberais também fizeram parte desse processo de adaptação.


Ceptro real usado pelos reis da Monarquia Constitucional, feito em Londres, 1828
Palácio Nacional da Ajuda, DGPC/ADF; fotografia: Manuel Silveira Ramos

Estudar a Revolução Liberal

O liberalismo foi tradicionalmente treinado do ponto de vista do constitucionalismo e dos grandes códigos de leis, com muita atenção devotada aos textos constitucionais de 1822 ou de 1826 e às suas soluções em termos de enumeração de direitos ou de organização dos poderes do Estado. É uma perspectiva importante, mas depois dos pioneiros estudos dos anos 1950, 1960 e 1970 — António José Saraiva, Joel Serrão, José Sebastião da Silva Dias, Miriam Halpern Pereira, Manuel Villaverde Cabral, Vítor de Sá, José Tengarrinha, Zília Osório de Castro , José Augusto França, Albert Silbert, Ruben Andresen Leitão, Vasco Pulido Valente, entre outros — a investigação histórica das últimas décadas tem aberta outras perspectivas sobre o processo liberal.

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Desde logo, foi chamada a atenção para o modo como, sob a égide da reforma do Estado, sobretudo durante e depois da guerra civil de 1832-1834, os liberais atingiram certamente os fundamentos da influência social e política da nobreza e fidalguia, do clero , das câmaras municipais e de outras corporações. Houve abolições e expropriações que mudaram a paisagem social portuguesa, apesar de Portugal ter interrompido uma sociedade rural.

Os políticos e os escritores liberais tiveram uma noção muito forte da mudança que tinham impresso na sociedade portuguesa. Como disse Almeida Garrett, o “Portugal velho” morrera e começaria um “Portugal novo”. Os liberais viram os seus próprios esforços de reforma do país como parte de uma mudança global no mundo, e foram diretamente inspirados por acontecimentos no estrangeiro, especialmente na Espanha e na Europa do Sul. O pronunciamento militar no Porto, em agosto de 1820, aumentou o pronunciamento militar ocorrido na Espanha em Janeiro do mesmo ano. Referências a exemplos espanhóis, franceses e britânicos foram frequentes nos debates liberais. O contexto internacional é, por isso, essencial para compreender a Revolução Liberal portuguesa.

Os debates provocados pelas mudanças liberais envolveram sobretudo uma classe de homens ilustrados, mas acabaram por mobilizar uma parte apreciável da população, não só através dos conflitos políticos a que deram azo, mas também pela intensificação do recurso a mecanismos de comunicação política como, por exemplo , como petições. O regime liberal desenvolveu o desenvolvimento e o aumento de uma esfera pública muito dinâmica, com jornais e associações políticas a desabrocharem por todo o reino.

Os governos, por sua vez, também promoveram festas cívicas e pulverizaram o território com monumentos, toponímia e lugares de memória do novo regime liberal. Os adversários do liberalismo seguiram o mesmo tipo de acção política de modo que o paradigma do “cidadão activo” cobriu assim todo o espectro político. Tanto os liberais como os seus opositores coexistiram dentro de uma mesma cultura de patriotismo, desenvolvida durante as Invasões Francesas, e invocaram a nação e as suas liberdades, o que conferiram à política da época da revolução liberal muita intensidade e uma grande capacidade de mobilização cívica .

Isso deveu-se também à importante dimensão religiosa da Revolução Liberal, que as primeiras abordagens à sua história tenderam a subestimar. Os liberais criticaram o poder e a organização do clero, sobretudo as ordens religiosas, que foram sujeitas a impostos pesados ​​nos anos 1820 e depois finalmente abolidos em 1834.

Os inimigos dos liberais acusaram-nos de estar sob a influência de correntes maçónicas anticatólicas. Os liberais devolveram-lhes a acusação, denunciando-os como agentes de uma conspiração internacional que estava a levar a cabo a subjugação total das igrejas nacionais aos ciganos e ao papado. O debate político ficou tão saturado de referências religiosas, que convém revalorizar para compreender as motivações políticas e os movimentos sociais nesta época.

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Um dicionário crítico

Foi para fazer um ponto da situação das pesquisas sobre a história da Revolução Liberal, e para lançar novas perspectivas sobre o tema, que um grupo de investigadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa — Rui Ramos, Nuno Gonçalo Monteiro, José Luís Cardoso e Isabel Corrêa da Silva — decidiram projetar uma obra que reunisse, sob a forma de dicionário, estudos sobre a emergência da monarquia constitucional e do Estado liberal nas primeiras três décadas do século XIX, combinando vários tipos de história: política, social, econômica, cultural, intelectual e dos conceitos.

O modelo adotado foi o do Dicionário Crítico da Revolução Francesapublicado em 1989 sob a cooperação de François Furet e Mona Ozouf. Não se trata, portanto, de um dicionário “enciclopédico,” mas “crítico”, o que significa que os textos não se referem aos verbetes sintéticos tradicionais, mas são, sim, ensaios interpretativos, num número limitado.

A organização do dicionário assenta em seis partes. As cinco primeiras sequências da estrutura do dicionário de Furet e Ozouf: Acontecimentos (Parte I), Atores (Parte II), Ideias (Parte III), Instituições e Dinâmicas Sociais (Parte IV), e Intérpretes, Memorialistas e Historiadores (Parte V) . A estas secções, aumentaremos uma VI Parte, inédita em relação à obra francesa, dedicada às Comparações Internacionais. Não é objetivo do dicionário cobrir exaustivamente todos os agentes e eventos do período em causa, mas selecionar aqueles que se reputam por mais relevantes e cuja análise crítica melhor servirá para perceber a revolução.

Com efeito, no dicionário, o leitor encontrará, por exemplo, ensaios sobre a independência do Brasil, a Guerra Civil de 1832-1834, o rei D. Miguel, o duque de Palmela, José Mouzinho da Silveira, Aristocracia e Classe Média, Liberalismo , Desamortização, Escravatura, Igreja e Ordens Religiosas, Maçonaria, Mulheres, Alexandre Herculano e Almeida Garrett, assim como ensaios comparativos entre a revolução liberal em Portugal e nos estados alemães, em Espanha, em França, em Itália ou na China. Ficaremos surpresos com a presença de alguns temas, ou lamentaremos a ausência de outros, mas o princípio da seleção e da limitação do número de entradas faz parte da própria natureza crítica do dicionário.

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Litografia colorida de 1833, representando a vitória constitucional. No alto, da esquerda para a direita, d. Amélia, D. Pedro e D. Maria II de Portugal. Abaixo, d. Pedro restitui aos portugueses a Constituição e a rainha
Coleção Particular

Cada ensaio incluirá uma “orientação bibliográfica” e remissões para outros ensaios. Prevê-se que a obra formará um volume com cerca de 1000 páginas. Os colaboradores são professores e investigadores de várias universidades, nacionais e estrangeiras, representando diversas tradições intelectuais, várias gerações e diferentes pontos de vista. O objetivo é produzir uma obra de referência que sintetize e faça um balanço do caminho percorrido até hoje pela historiografia, mas também que instigue o leitor a desapossar-se de lógicas deterministas ou preconceitos anacrônicos e compreender os atores, as criações, as motivações e os constrangimentos da revolução sem se sentirem decepcionados por aquilo que não alcançaram, nem ávidos por ver neles a paternidade do Portugal actual.

Tal como foi em 1989 a ambição de Furet e Ozouf para o seu Dicionário Crítico da Revolução Francesaem 2020 a ambição do nosso é propor ao leitor que revisite a Revolução Liberal como que percorrendo o século XIX da frente para trás, disponível assim a ver 1820 na extraordinária riqueza das suas propostas e das suas virtualidades. Compreendendo, através de informação e reflexão actualizada, o momento em que, como disse Garrett, começou o “Portugal Novo” e acabou o “Portugal Velho”.


Historiadores, ICS-ULisboa


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