Desde Abril de 1974, quando as forças “antifascistas” asseguraram o domínio da memória colectiva sobre a PIDE, as relações entre a sociedade portuguesa e a polícia política do Estado Novo têm sido analisadas exclusivamente sob o prisma da repressão exercida sobre a pequena minoria de portugueses que se envolveu na oposição ao regime. A História da PIDE, de Irene Pimentel, para reportar exclusivamente a obra mais influente na dimensão, foca-se quase unicamente no estudo das modalidades de repressão exercida sobre a oposição ao Estado Novo. A narrativa histórica estabelecida tende a enquadrar o resto da população no papel de “povo-vítima”. Nas palavras de Fernando Rosas, em Salazar e o Poder, outra obra influente na propagação da memória “antifascista” da PIDE, a experiência dos portugueses ter-se-ia restringido a viver no “temor reverencial” e a manter passivamente o “clima universal de acatamento”.
Neste domínio, a historiografia portuguesa contrasta fortemente com os desenvolvimentos da bibliografia internacional dedicada ao estudo das sociedades submetidas a ditaduras violentas. Historiadores do “quotidiano”, porquê Alf Lüdtke, e das “práticas acusatórias”, porquê Robert Gellately, têm contribuído para reconsiderar o papel dos cidadãos comuns no funcionamento dos regimes ditatoriais, designadamente trazendo à luz práticas sociais de adaptação dos cidadãos às autoridades, as quais concorreram para a perpetuação das ditaduras.
Se a privação deste tipo de abordagem no quadro historiográfico português decorre de razões sobejo complexas para serem sintetizadas cá, duas delas merecem ser destacadas.
Primeiro, o facto de a investigação académica sobre a repressão salazarista ser, em larga medida, dominada por ex-oposicionistas — porquê Rosas e Pimentel — tem dificultado a renovação do campo de estudo. As suas experiências pessoais levam mais a preservar a memória “antifascista” do que a questionar algumas das suas dimensões fundamentais.
Segundo, certos aspectos da memória “antifascista”, a principiar pela noção de “povo-vítima”, são convenientes à sociedade no seu conjunto. Esta leitura permite não só a desculpabilização, mas também a vitimização en masse dos portugueses em relação à ditadura, mesmo se poucos foram os que se levantaram contra ela. A representação da PIDE enquanto polícia omnipotente operada por agentes cruéis e perversos — elementos da memória “antifascista” da PIDE — acabou por servir os interesses de todos, de 1974 até hoje.
Acreditando que as relações entre a sociedade e a PIDE foram substancialmente mais complexas, a minha pesquisa recente, enquanto investigador Marie Curie, consiste em examinar as interacções entre a polícia política e os “cidadãos comuns”, cá entendidos porquê a esmagadora maioria dos portugueses que nunca se envolveu em actividades políticas. Trata-se de ir para além da narrativa tradicional da repressão e da violência para melhor entender o papel da PIDE na organização da sociedade durante o Estado Novo.
Os indícios mais óbvios da interacção espontânea da população com a PIDE são as cartas enviadas pelos cidadãos comuns dispersas pelos muitos milhares e extensos processos instruídos pela PIDE, hoje à guarda do Registo Vernáculo Torre do Trambolhão. Em tal volume de documentação, a identificação destas cartas constitui uma tarefa extremamente morosa, pelo que tenho recorrido aos Registos de Correspondência Recebida da PIDE e do Ministério do Interno, instituição de que dependia organicamente, embora nem sempre estas tenham sido preservadas integralmente, apresentando lacunas consideráveis.
Neste corpo documental, foi provável notabilizar três formas de interacção espontânea entre a população e a PIDE.
As cartas de denúncia
Para o período entre 1960 e 1968, encontrei até agora 523 cartas de denúncia. Considerando a elevada taxa de iliteracia em Portugal, as limitações das fontes consultadas e o facto de ainda não ter estendido a minha investigação a outros arquivos, porquê o Registo Oliveira Salazar e o Registo da Presidência da República, nascente número, ainda assim, é significativo.
A maioria dos autores das cartas tinha por objectivo utilizar a PIDE para a solução de conflitos pessoais, sendo a vingança a principal motivação. Em Janeiro de 1964, posteriormente ter recebido uma epístola anónima acusando Armando A. de partilhar propaganda comunista, a ulterior investigação da PIDE apurou que o motivo da denúncia fora uma “questiúncula” entre vizinhos acerca de um muro de jardim.
A PIDE era também mobilizada no contexto de querelas familiares ou afectivas. Assim, a 9 de Março de 1960, António P. denunciou “um provável monstruosidade da sua ex-noiva”, enquanto, em Setembro de 1964, M. Pinho pediu à PIDE que a sua mulher fosse “impedida de transpor do país” posteriormente ter “despovoado o seu lar”.
A PIDE servia também para “resolver” problemas no lugar de trabalho. Em Janeiro de 1964, esta polícia recebeu uma epístola anónima acusando o padre Sebastião B. de desenvolver “actividades subversivas” no seminário de Ermesinde. Depois indagações, concluiu-se que a missiva fora motivada por um desentendimento entre o padre e dois professores do seminário. Um deles, por ter sido despedido, escrevera à PIDE “a termo de estragar a vida do padre, chamando-lhe comunista”.
Um outro tipo de denúncia corresponde a instrumentalização da ameaço representada pela PIDE para favor próprio. Um caso paradigmático é o de José O., empregado da firma Organizações Predomínio, que, em 1958, publicou um livro de texto propagandístico intitulado Trinta Anos de Estado Novo. A estratégia mercantil de José O. consistia em enviar cópias do livro a potenciais clientes, ameaçando denunciá-los à PIDE caso não o comprassem. O estratagema funcionou até um jurisconsulto do Porto se queixar à própria polícia política, que de inopino pôs termo às actividades de José O.. Estas ameaças de denúncias eram tão comuns que até um pedinte em Miranda do Douro, Zeferino M., ameaçava as pessoas que não lhe davam esmola que as iria denunciar à PIDE porquê comunistas (Agosto de 1962).
Identifiquei ainda um conjunto de cartas de denúncia de franco pedestal ao Estado Novo. Mesmo que o regime não inspirasse tanta mobilização popular porquê o Volksgemeinschaft nazi ou a utopia socialista na RDA, não faltavam ao Estado Novo princípios ideológicos com os quais a população se identificava. Estes passavam, por exemplo, pela resguardo do legado imperial da pátria durante o período da Guerra Colonial, que se traduzia na denúncia de “boateiros derrotistas” e “desertores”.
Também a resguardo do catolicismo enquanto base místico da pátria levava padres — mas não só — a denunciar os “desvios” da norma católica. Assim, em Setembro de 1961, o padre Joaquim C. alertava as autoridades quanto à existência, em Elvas, de uma “seita protestante”. Muitas vezes associado à resguardo da moral católica, o anticomunismo inspirava também denúncias contra simpatizantes do PCP. Tal foi o caso da epístola anónima enviada de Alpiarça, em Julho de 1964, acusando Jerónimo B. de estribar “esta maldita teoria”. A denúncia levaria à detenção do quidam pela PIDE.
A PIDE porquê oportunidade económica
Em 1975, já depois da queda do regime, Otelo Saraiva de Roble realçava, em Cinco Meses Mudaram Portugal, a sua “fé de que em século funcionários da ex-DGS que estejam presos, talvez uns 60 ou 70 nunca na vida tenham espancado ninguém. A maioria”, notava ele, “eram exclusivamente funcionários do Estado, pais de família porquê tantos outros que ali ganhavam o seu sustento e o dos seus”. Esta avaliação sublinha, a meu ver, dois pontos importantes. Por um lado, nem todos os funcionários da polícia política se enquadravam no cliché do “Pide” mal-encarado veiculado pela recente memória social da PIDE. Por outro lado, a polícia política podia simbolizar simplesmente uma oportunidade profissional, não requerendo qualquer predisposição dos candidatos para actos ignominiosos.
Efectivamente, as numerosas cartas de “candidatura espontânea” enviadas por cidadãos comuns desejosos de ingressar na PIDE testemunham o poder de encantamento da polícia política neste domínio, seguramente potenciado pelo desemprego e a pobreza dominantes. Os Registos de Correspondência do Ministério do Interno contêm 462 candidaturas espontâneas no mesmo período (1960-1968). Considerando os hiatos temporais já referidos, nascente número parece mostrar para um maravilha de dimensão considerável. Interessante também é verificar que, apesar da alegada “má nomeada” da polícia política, eram muito mais os portugueses que queriam juntar-se à PIDE do que aqueles que queriam ingressar nas forças de policiamento regulares — porquê a PSP (255) e a GNR (128) — fosse por vontade de integrar as instituições da ditadura, fosse porque certas funções, porquê a de informador, não exigiam requisitos especiais.
Em alguns casos, a PIDE era mesmo vista porquê uma oportunidade para vários membros da família. Em Março de 1965, José V. e a sua mulher, Maria, ofereciam-se conjuntamente porquê informadores. Neste caso, foi a pobreza que acabou por moldar as relações entre a sociedade e a PIDE.
De facto, a maioria dos autores destas cartas provinham das classes sociais mais baixas. As deficiências gramaticais e a pobreza do léxico utilizado — um destes candidatos, escrevendo do Funchal, em Setembro de 1965, descrevia-se porquê “um pequeno a Nalfabético [sic]” — reflectem um inferior capital cultural e fraco regimento socioeconómico.
O patrocínio influente da PIDE
As fontes analisadas revelaram ainda que muitas vezes os portugueses procuravam na PIDE o patrocínio para a obtenção de determinados benefícios. Esta prática parece, aliás, estar em risca com os expedientes a que os portugueses estavam habituados a recorrer tendo em vista ultrapassar os limites impostos por um sistema político zero poroso, um aparelho burocrático pouco eficiente e um caciquismo generalizado.
No contexto desta “sociedade clientelista”, a PIDE era uma das instituições cujos recursos podiam ser mobilizados pela população. As petições a esta polícia podiam ser tanto individuais porquê colectivas. Tal foi o caso dos moradores de A-da-Beja que, no Verão de 1963, se dirigiram ao director dos Serviços Gerais da PIDE, António Faria Pais, que aí passava férias, para solicitar a electrificação da localidade há muito prometida pelas autoridades. Faria Pais transmitiu a pretensão ao influente macróbio subdirector da PIDE Agostinho Barbieri Cardoso, que a transmitiu ao subsecretário de Estado para a Indústria. Algumas semanas mais tarde, Faria Pais foi informado de que o pedido seria atendido antes do final do ano.
O maravilha não foi especificamente português, tendo sido observado em outras ditaduras de longa duração, porquê a RDA. Em ambos os casos, era a percepção popular do poder da polícia política que levava cidadãos a recorrer-lhe para ultrapassar os obstáculos burocráticos do quotidiano.
Um povo cúmplice?
A questão de saber se os portugueses foram vítimas ou cúmplices da PIDE é evidentemente redutora, pois encobre a heterogeneidade e anfibologia das posições assumidas pela população. Serve, no entanto, para realçar dimensões fundamentais, até hoje ignoradas, da relação entre a sociedade e a PIDE. No estado recente da minha investigação, são evidentes duas conclusões preliminares.
Em primeiro lugar, a cultura das denúncias contribuiu para fortalecer o regime. As denúncias “genuínas” dificultavam os esforços da oposição e permitiam, para usar a frase de Michel Foucault, a “operação capilar do poder” estado-novista, imiscuindo-se nas relações interpessoais. Até as denúncias feitas por razões pessoais representavam, porquê tem observado Patrick Bergemann, em Judge Thy Neighbor, o reconhecimento tácito da legitimidade das autoridades para investigar e julgar queixas.
Em segundo lugar, uma grande secção da sociedade portuguesa, longe de permanecer passivamente atemorizada, adaptou-se ao quadro institucional imposto pela ditadura, incluindo a PIDE. A rotinização desta instituição ao longo de 48 anos levou à sua normalização. Individualmente, muitos cidadãos exploravam as oportunidades que se lhes apresentavam, fosse para ultrapassar os obstáculos típicos de um sistema político não-inclusivo (através de petições e cartas de candidatura), fosse para atingir objectivos pessoais (através de denúncias).
Compreender melhor os mecanismos sociais que contribuíram para a longevidade do regime implica reconhecer a complicação destas interacções. A relação entre a PIDE e a população não se reduz a uma dicotomia entre repressores e perseguidos. Os portugueses nunca foram somente um “povo-vítima” da PIDE.
Historiador, ICS-Ulisboa