Contrariando as pesquisas de intenção de voto da reta final da campanhao Partido Socialista (PS) conseguiu uma vitória expressiva em Portugal e garantiu a maioria absoluta nas eleições legislativas do último domingo (30). Cientistas políticos atribuem a disparidade entre as sondagens e o resultado final a uma combinação de fatores que mobilizou o eleitorado à esquerda pelo chamado voto útil.
A concentração de votos no PS deu-se principalmente à custa da desidratação do desempenho dos partidos menores mais à esquerda. Antigos parceiros dos socialistas na Geringonça —coalizão formada em 2015 unindo esse tradicionalmente dividido segmentos políticos—, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português contarão com menos da metade dos deputados que tinham na legislatura anterior.
As pesquisas divulgadas na semana das eleições, que sinalizavam empate técnico entre socialistas e o maior partido da oposição, o PSD (Partido Social-Democrata), de centro-direita, são apontadas como um dos grandes resultados desse voto útil.
“A possibilidade de uma maioria de direita foi provavelmente algo artificial, construída com base em sondagens que surgiram na última semana de campanha. No fim, ajudou a mobilizar o voto útil para os socialistas”, avalia Francisco Pereira Coutinho, professor da Universidade Nova de Lisboa.
UM derrota surpreendente do PS nas eleições municipais em Lisboahá quatro meses, pode ter pesado na ponderação, segundo ele. Na ocasião, embora todas as sondagens indicassem uma vitória confortável do prefeito Fernando Medina, a centro-direita acabou tirando a capital das mãos da esquerda pela primeira vez em 14 anos, elegendo Carlos Moedas, do PSD.
Acredita-se que, por considerar a fatura liquidada, parte do eleitorado à esquerda em Lisboa não tenha comparado às urnas —o voto não é obrigatório no país, e o pleito teve registro de abstenção.
“Por vezes, quando há uma dinâmica de partida já ter um vencedor esperado, parte do eleitorado tende a se desmobilizar. Pode-se interpretar que tenha sido o caso entre as eleições do PS, pressupondo que Medina já estava reeleito”, diz a cientista. política Paula Espírito Santo, professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.
Na avaliação dos especialistas, a migração do voto à esquerda para o PS também indica uma penalização aos antigos parceiros da geringonça pela convocação de eleições antecipadas. Em outubro, BE e comunistas voteam com a direita para reprovar o Orçamento do Executivo socialista para 2022o que fez com que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa optou por dissolver o Parlamento.
Ao longo de boa parte da campanha, o primeiro-ministro, António Costa, introduziu o discurso de responsabilização dos ex-aliados e insistiu que só uma maioria socialista reforçou a estabilidade do país. Bloquistas e comunistas, por sua vez, acusaram o premiê de ter provocado a antecipação do pleito mirando justamente uma maioria absoluta.
“Foi uma jogada política brilhante de Costa, que conseguiu na terceira tentativa uma maioria absoluta. E sejamos objetivos: em 2019, ele até reunir mais condições políticas do que agora“, diz Pereira Coutinho.
Com pelo menos 117 dos 230 deputados do Parlamento —a apuração para os quatro assentos dos portugueses que moram no exterior não havia se encerrado até a publicação deste texto—, o PS não precisará dos outros partidos para importar sua agenda legislativa.
No discurso da vitória, porém, o primeiro-ministro afirmou que pretende manter o diálogo. “Uma maioria absoluta não é poder absoluto, não é governar sozinho”, afirmou. “Essa maioria será uma maioria de diálogo, com todos que representam os portugueses na sua pluralidade.” Costa disse que só não vai se encontrar com representantes da legenda de ultradireita Chegaque deve se tornar a terceira força no Parlamento.
Perante a capacidade de manobra reduzida da oposição, os analistas apostaram na atuação de Rebelo de Sousa como forma de balizar a ação do governo. “Os opositores, mesmo coligados, não poderão fazer grande coisa, a não ser por alguma legislação que exija mais da metade dos votos no Parlamento, mas o presidente pode. Se entender, ele pode voltar a dissolver o Parlamento”, diz Pereira Coutinho.
Portugal tem um regime semipresidencialistaem que a chefia de governo fica a cargo do primeiro-ministro, enquanto o presidente é o chefe de Estado —que tem como poder principal justamente o de dissolução do Legislativo e de demissão do governo.
Embora tenha sido eleito como independente, o atual presidente, Rebelo de Sousateve longa carreira política no PSD, do qual foi líder. A relação entre ele e António Costa, que foi professor e aluno na faculdade de direito, não teve grandes sobressaltos públicos até o momento.
Apesar da vitória socialista, os partidos à direita ampliaram em mais de 400 mil votos seu resultado em relação ao pleito anterior. O desempenho foi puxado pelo crescimento de duas legendas mais à direita do PSD: o Chega e a Iniciativa Liberal (IL), que passaram respectivamente ao posto de terceira e quarta maior bancada do Parlamento.
“Enquanto à esquerda nós tivemos uma dinâmica de voto útil, em que os participantes transferiram o voto para garantir a estabilidade governativa anterior, a direita passou por uma reconfiguração”, analisa Paula Espírito Santo. “Ela acabou movida por uma lógica de novos interesses e ofertas partidárias.”
Ambos os partidos estrearam no Parlamento em 2019 e tinham, na última legislatura, apenas um deputado cada um; agora, terão ao menos 20 ao todo, sendo 12 do Chega e 8 da IL.
Alinhado a outras legendas populistas da direita europeia, como o Vox da Espanhao Chega se apresenta como antissistema, é frequentemente acusado de discurso discriminatório contra comunidades ciganas e já teve membros ligados a organizações neonazistas.
Líder do partido, André Ventura foi condenado por “ofensas ao direito à honra” por ter chamado de bandidos, em debate na TV, membros de uma família negra e moradora de um conjunto habitacional.
Já a Iniciativa Liberal aposta no discurso de liberalismo clássico, com propostas de modernização administrativa e redução do papel do Estado. O crescimento dos dois novos atos contrasta com o fracasso eleitoral de um dos partidos mais tradicionais da direita portuguesa: o CDS-PP, pela primeira vez desde a redemocratização, não conseguiu eleger nenhum deputado.