Posso falar ou mandar um bitaite com relativa ligeireza. É uma liberdade que preço. Mas se me enviou para grafar a sério, pesa-me o que vou manifestar. Procuro-lhe o propósito, questiono-lhe a utilidade. Isto serve para quê? Provoca quem? Porque é que isso me importa? Quem acrescenta?
É uma tarefa que levo a sério e, por isso, em 2023, praticamente não escrevi. Nas páginas da Mensagem, o meu último texto data de agosto de 2022 e termina com esta frase: “Nunca me senti tão sortudo”. Consulte-me ao rompimento de ver a minha mãe muito depois de um susto de saúde.
Precipitei-me – acontece-me muito. Pouco depois desses dados, diagnosticaram-na com uma doença irremediável e de rápida progressão. Nesse dia, adormeci ao som de um cronômetro invisível.
Desde aí, até hoje, faltou-me coragem para grafar sobre coisas importantes, porque a valor é uma coisa que nós damos e eu, entre tantas que ma pediram e tão poucas que me sobrava, esvaziei.
A angústia é uma emoção violenta. É a falta de sossego, uma sensação permanente de frustração e sofreguidão, provocada pela incapacidade de evitar o resultado. Conhecia a termo – conhecemos todos. Mas ele não conhecia o peso, que me soterrou.
Já não sinto angústia, mas sou toda a saudade do mundo. Tenho no coração um buraco do tamanho de uma mulher imensa e na goela um nó que se desata exclusivamente quando olho para a filha que, entretanto, chegou.
Hoje é Dia da Mulher e a minha mãe me ensinou a comemorar com ela. Ofendia-se se me esquecia – e esqueci-me algumas vezes. Para mim o Dia da Mulher foi sempre o dia dela, apesar de ter a felicidade de mim ver rodeado de tantas mulheres que admiro. Mas isso era dela. Da minha mãe, que em miúda se veste para escandalizar. Que contínuos os estudos contra a vontade dos pais. Que lutou para transpor da pobreza em que nasceu, que se mudou para Lisboa e criou sozinha um bebê pequeno, enquanto trabalhava de dia e estudava de noite. Que foi sempre exemplo de coragem e nascente inexaurível de inspiração.
Que me ensinou que a vida não são só coisas boas: a vida é tudo. É o trabalho, as irritações, os impostos, as filas na 2ª Circunvalar, o fragor dos vizinhos. É pôr a mesa e fazer o jantar. É estender a roupa e lavar a morada de banho. É conformidade com quem discorda de nós. Cuidar da família e dos amigos. Sobreviver-lhes e à dor.
Ensina-me que a vida é isso tudo e gostamos dela. Gostar da vida não é tão fácil quanto parece. É uma viagem permanente e abrupta entre o colecionismo e o despojamento, a excitação e a desilusão. O lucrar, o perder e o seguir vivendo.
Aprendi em tempo que o Dia da Mulher não era o dia da minha mãe. Aprendi que era o dia de memórias de luta e de sonhos de liberdade, saudação e paridade ainda por executar. Mas hoje, porquê em todos os dias desde aquele em que escrevi pela última vez neste jornal, é na minha mãe que penso.
Ao vasculhar em seus papéis encontrei um texto velho que lhe escrevi neste dia, há quinze anos, numa outra vida de ignorância pueril.
Escrevia assim esse jovem dramático:
“As flores, ainda que belas, passam, murcham. As palavras e ficam são estas que te deixo hoje e sei que a elas se juntam outras vozes: não sou exclusivamente eu que te considero uma mulher de fabuloso coragem e força, um exemplo de preceito e de vitalidade, uma nascente de pujança para todos os que você rodeiam. Até mesmo a noite mais escura e tempestuosa é determinada e infalivelmente proporcional pelo nascer do Sol e do mesmo modo a todo o dia preto corresponde outro, luminoso e feliz.
Espero que o de hoje seja tal porquê o merece, feliz, e apesar de saber que nem todos o serão, num ano existem sempre mais dias de Sol que de chuva.
Serás sempre, sempre, valorizada e dulcinéia, porquê mãe, porquê amiga e porquê Mulher.”
Todas as cartas de paixão são ridículas. E esta, que era de paixão num Dia da Mulher, lembrou-me do que eu já sabia e que ela não me teria deixado olvidar: que há por aí muitos textos para grafar, muita vida para viver, muitos dias de Sol.
Hoje é dia de memórias de luta e de sonhos de liberdade. Lembrei-me da minha mãe e escrevi.
No sofá, deitada, a minha filha sem dentes já sorri. Nunca me senti tão sortudo.
João Marecos
Chegou a Lisboa no preciso segundo em que chegou ao mundo. Cá cresceu, fez amigos, estudou Recta, tornou-se jurisperito, antes de uma curiosidade o levar para Novidade Iorque, onde repetiu tudo isso. Escreveu um livro, que apresentou no Chiado. Fundou o 100 Oportunidades à beirada do Tejo. É o paixão que as mantém fora de Lisboa, será o paixão a fazê-lo voltar.
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